Uma homenagem ao meu pai: um contador de estórias de mão cheia, que trazia em seus contos malassombrados a melancolia da eterna saudade que sentia de Caicó, sua Terra Natal.

quinta-feira, 6 de maio de 2010

A luz do outro mundo

Era uma noite como qualquer outra naquela Caicó dos anos 40. Tio Pé-de-Graxa, ou Tio Graxa, mantinha seu costumeiro hábito boêmio. Umas voltas na praça da Matriz de Santana, conversa com amigos, e já mais noite adentro, os cabarés. Aqueles da rua da Cadeia Velha. Mais só umas voltinhas por lá. Frequentava mesmo era pras bandas do "Cai Pedaço". Por lá tinha alguém por quem seu coração batia mais forte.
Era sempre assim. 
Mais pro fim da noite, quando por lá não dormia, retornava para casa, onde sua mãe D. Hermínia, aguardava ansiosa a chegada de seus filhos em casa.
Nessa noite, ficou com sua amada até perto da luz se apagar. A luz à motor, dava sinal de se apagar lá pelas 11 da noite. Depois de muito insistir em passar a noite ali, foi convencido a voltar para casa: uma preocupação à menos para sua mãezinha.
Meteu o pé na estrada, como se diz. Passou pela Cadeia Velha, onde se dizia que aparecia em certas noites um homem sem cabeça na janela do segundo andar que havia sido assassinado ali. Tomou o rumo da Avenida Seridó, e aí a luz deu sinal de apagar.
Vige - pensou, apressando ligeiramente o passo. - tomara que dê tempo de chegar em casa.
Quando ia já perto do centro operário avistou uma cena curiosa: sentadas em tamboretes debaixo de um poste de luz havia umas freiras costurando alguma coisa tipo um lençol. Achou estranho: uma hora dessas, essas freiras costurando no meio do tempo? que coisa esquisita - conversou consigo mesmo em voz alta.
Foi chegando mais perto... então a luz deu o último sinal e logo se apagou. Tudo ficou escuro. Tudo?
Ué! que negócio esquisito é esse?! - exclamou assustado. - A luz não apagou? - indagou mais assustado ainda.
 O que aconteceu era realmente muito esquisito. Certamente "coisa do outro mundo", como contou mais tarde. Porque a luz da cidade inteira de fato se apagou. Menos a daquele poste onde estavam as freiras.
Já de cabelo em pé, Tio Graxa se aproximou daquela cena estranha. E viu que as freiras costuravam uma mortalha. É que naquele tempo ainda se tinha o costume de quando alguém morria se "amortalhar o defunto". Geralmente o finado era vestido com roupas parecidas com as do seu santo de devoção, ou se fosse muito pobre, um simples camisolão branco.
Metido a corajoso ou pra não perder a pose, o Tio Graxa tirando respeitosamente o chapéu, abordou as "irmãs" com um "boa noite" e perguntou: - quem morreu? - Já que numa cidade pequena quase todos se conheciam lhe parecia natural sua curiosidade.
Não houve resposta. Apenas olhares frios e distantes que não olhavam para lugar nenhum! Era como se os olhos daquelas freiras estivessem soltos dentro das órbitas. Não havia expressões em seus rostos. E o lugar de repente pareceu ficar mais frio.
Tio Graxa, olhando a escuridão em volta daquela cena iluminada, sentiu seu coração pular dentro do peito, as pernas tropegarem, a espinha gelar... 
Cruz credo! - gritou apavorado. - Virgem Santa! - largou no chão o chapéu e saiu em desabalada carreira.
Correu até perder o fôlego e, tropeçando aqui e ali na buraqueira do caminho de casa, finalmente avistou a luzinha do candeeiro que D. Hermínia deixava acessa na sala de casa. Respirou fundo e continuou a correr ainda assustado.
Lá dentro, D. Hermínia como sempre fazia, repetiu sua costumeira frase, um misto de alívio e preocupação:
- "Lá vem Graxa. E tá assombrado..."

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