Uma homenagem ao meu pai: um contador de estórias de mão cheia, que trazia em seus contos malassombrados a melancolia da eterna saudade que sentia de Caicó, sua Terra Natal.

terça-feira, 21 de fevereiro de 2012

CHICO REDENÇÃO

Este post é uma homenagem a uma figura simplória e de uma criatividade ímpar para inventar, quase que instantaneamente, histórias cheias de pantomima, intermináveis e repletas de pontas soltas, que ao final, nem ele mesmo conseguia amarrar.

Recebeu por isso a alcunha de Chico Redenção, em referência à novela mais longa que já foi exibida pela televisão brasileira: Redenção, exibida pela TV Excelsior na década de 60 do século passado. Fosse hoje, talvez o teríamos chamado de Chico Lost!

Chico Redenção era um pedreiro. Homem forte, bigodudo, musculoso, estilo halterofilista. Torcedor fanático do Sampaio Corrêa, "a Bolívia querida de maior torcida nesse Maranhão"! Até sua bicicleta, com a qual chegava em nossa casa todos os dias para trabalhar, era toda enfeitada com as cores bolivianas. Talvez daí a expressão: "mais enfeitada que bicicleta de pedreiro".



Não havia fato, fosse real ou lendário, naquele Maranhão esquecido por Deus, que Chico Redenção não houvesse presenciado ou ao menos passado por perto na hora do "acontecimento". Tinha sempre alguma coisa pra falar, e sempre com acréscimos generosos. Tudo isso enquanto trabalhava. Com a colher de pedreiro nas mãos, o cigarro Minister no canto da boca, traçando uma massa ou assentando tijolos numa parede quase eterna, tão interminável quanto suas lorotas.

Lembro de certo dia quando uma mulher, ainda jovem, pulou para a morte do topo de Edifício Caiçara, um dos mais altos de São Luís naquela época, com estupendos dez andares. Embora Seu Chico já estivesse lá em casa trabalhando desde as sete horas da manhã, quando a notícia correu ele disse:

- Bem que eu vi um lençol voando na hora que eu ia passando na Rua Grande!

- Como Seu Chico?! - exclamou alguém.

- Verdade! - rebateu - E não é a primeira vez nem vai ser a última. É por causa da maldição...

- Que maldição? Lá vem o Senhor com suas histórias... - falou alguém.

- Verdade mesmo! - continuou.

- Naquele lugar onde hoje é o Caiçara, tinha mesmo era uma igreja muito antiga. A Igreja de Nossa Senhora da Conceição . Aí...


- Vamo parar com esse converseiro. Deixa Seu Chico trabalhar, senão ele não termina esse serviço nunca! - interrompeu papai.

Que pena! A diversão já ia começar, mas... Seu Chico deu um sorrisinho entre os dentes apertando seu cigarro. Esperou um tempinho enquanto papai se distraia com outra coisa, e continuou:

- Entonce (começou com a voz suave falando como o maranhense antigo)! Tinha antes uma igreja lá. A igreja foi derrubada faz tempo e os santos foram levados pra outros lugares, até pra casas de gente rica. Aí construíram no lugar o Edifício Caiçara. 

- Muita gente morreu na construção e aí o edifício ficou com fama de amaldiçoado. Inté hoje aparece muita visagem por lá!

- Teve um tio meu que trabalhou naquela construção e viu muito malassombro. Aparecia um velho bem barbudo vestido com uma batina e carregando uma santa como se tivesse procurando o altar. Ele nunca encontrava, e subia e descia pelas escadarias ainda em construção com essa santa nos ombros.

- Inclusive, um colega desse meu tio, um dia desceu correndo as escadas, e quando chegou no quinto andar perdeu o apoio e caiu lá embaixo e morreu.

- Esse rapaz não tinha parente em São Luís. A família dele era de Bacabal. E o pai dele trabalhava numa usina de arroz.

- Nessa usina morava uma moça que foi namorada desse rapaz, mas ela morreu picada por uma cascavel no meio do arrozal. A cascavel tinha de- do- trrueze metros.

- Trrueze? - perguntei.

Até chegar numa medida que achava ser ideal em suas histórias, Chico Redenção derrapava na língua, gaguejando...

- É! Treze metros mesmo! Inclusive quem matou a cascavel foi o filho do dono da usina. Esse rapaz que matou a cascavel, inclusive, foi estudar no Rio de Janeiro e nunca mais voltou. Parece que casou por lá com a filha de um senador. 

- Esse senador, levou muita gente aqui do Maranhão pra trabalhar na construção de Brasília, e...

- Seu Chico - gritou mamãe. - e o Caiçara, home?! Não vai acabar a construção dele não?

- Eh, eh, eh... Dona Preta é agoniada mesmo! Eu nem...

- Parem com isso. Num já disse pra deixar Seu Chico trabalhar. - Interrompeu papai de uma vez por todas.

- Chico Redenção, num misto de prazer e inconformismo, cochichou em direção a mim: 

- Ainda nem falei que DonAna Jansen foi a antiga dona daquela usina de arroz e...

- Seu Chico, cuida do trabalho. - reclamou mais uma vez papai. 

- Ô home enrolão, meu Jesus!

Acabou de vez com a história

Foi assim! Nossa convivência familiar com Chico Redenção foi de longa duração. Lembro dele quando tinha meus seis a sete anos de idade até cerca dos dezoito. Ele ainda traçando massa e levantando ou rebocando paredes, batendo piso e tudo mais. Lembro sempre de papai ralhando: sai daí, menino! Deixa Seu Chico trabalhar!

Não era pra menos... cada pausa no trabalho pra emendar mais um enredo sem ponta em suas histórias, eram tijolos a menos na parede. Talvez por isso, todas as memórias de minha infância e adolescência sejam permeadas pelo cheiro de cimento e massa, dos tijolos e telhas, e pela visão empoeirada de ambientes sempre em construção. É como se eu mesmo estivesse sendo construído ano após ano.

Chico Redenção é uma grata lembrança. Dessas que deviam ser gravadas em pedra. E de fato foram, pois as casas em que nós vivemos em São Luís têm uma parede ou outra, um alicerce ou coluna, um piso ou telhado, onde a mão de Chico Redenção fez calo. Estão lá, eternizadas enquanto o tempo deixar, naquelas casas suburbanas, as marcas de um homem simples e íntegro que misturou ao traço da massa o seu suor.




sábado, 8 de janeiro de 2011

Rua Anchieta, n° 1000

Lá vinha ele, noite adentro. O ronco do motor de seu FêNêMê 63 parecia o único barulho que ressoava por aquelas paragens. Vruuuuuuuummmmmmm… como o ronronar de uma onça resfolegando a cada troca de marcha.

A noite de céu tão limpo fazia São Cristovam, postado no console de frente ao pára-brisa, multiplicar-se em sombras projetadas pela luz das estrelas. Era como se o santo protetor dos caminhoneiros tivesse trazido um séquito celestial para acompanhá-lo na árdua tarefa de cuidar desse notívago solitário, que por razão do ofício trocava o conforto e aconchego de sua alcova, pela solidão fria da noite do sertão.

Já tinha ele descido o Serrote Laje do Chato, como quem vinha das bandas de Timbaúba dos Batistas, e estava numa subida da Serra do Cavalcante, depois do entroncamento do que hoje é a RN – 288 com a BR - 427, que vem de Jardim de Piranhas para Caicó. Seu destino era Jardim do Seridó, logo adiante onde deixaria sua carga de farinha e rapadura. Retornaria pelo mesmo caminho a Caicó com uma carga de bananas. E lá teria que gastar um tempo em busca de uma carga qualquer que o levasse ao Açu, passando por Jurucutu. Porque do Açu teria uma grande carga de milho para Natal. E lá em Natal não faltaria frete para qualquer lugar que fosse desse sertão abençoado.

Mas planos são planos. Qualquer um pode e deve fazer. Estava acostumado com mudanças de planos, afinal a vida de estradeiro na boléia de um caminhão por aquelas estradas empoeiradas era coisa normal. Normal não era, no entanto, o que estava por vir. Até para um caminhoneiro bem rodado como ele a surpresa seria demais.

Naquela subida de serra pressentiu que algo não ia bem com seu caminhão antes mesmo de qualquer defeito aparecer. A intimidade que mantinha com aquele monstro das estradas permitia-lhe pressentir qualquer anormalidade que pudesse se apresentar com certa antecedência. É como quando se abraça a pessoa que se ama depois de uma ausência prolongada. Cada pequeno espasmo muscular, cada contração do rosto, cada tremida no corpo tem um significado particular. Assim se sentia ele ao por as mão no volante daquele caminhão enorme.

De fato, o bicho deu um ronco esquisito seguido por um solavanco e parou… bem na subida da serra. E agora? Olhou de um lado… olho de outro… tudo silêncio e escuro como breu. No céu parecia que um anjo descuidado havia derramado uma jarra de leite, de tanta estrela que tinha. Á frente, a luz do farol faiscava nos pedregulhos e lajedos, como se milhares de olhos curiosos o observassem. Pelo retrovisor, só escuridão. Essa angustia de olhar no retrovisor à noite na estrada trás um medo inexplicável, atávico… é como olhar para dentro de si mesmo querendo descobrir seus próprios segredos.

Beijou seu São Cristovam. Fez uma pequena prece em murmúrio e desceu da cabine.

Mal pôs os pés no chão poeirento deu de cara com um sujeito que tirando o chapéu panamá lhe cumprimentou:

- Boa Noite cidadão!

- Bo’ boa noite! – respondeu de pronto com o olhar assustado.

Olhou de um lado para outro e não viu mais nada além daquele sujeito todo alinhado vestindo um terno de linho branco e com o chapéu na mão. Não havia absolutamente qualquer sinal de outra alma vivente naquelas paragens. Nem qualquer automóvel ou um casebre que seja. Meu Deus! Que será que está acontecendo? – pensou ele.

- Vejo que o companheiro está com problemas – falou o homem interrompendo aquele momento de espanto.

- É… e pelo jeito vou passar a noite aqui – retrucou o caminhoneiro.

- Mas parece que o cidadão está com sorte, porque sou mecânico e sempre trago minha caixa de ferramentas comigo – falou o homem calmamente erguendo um pouco sua mão direita onde segurava uma velha caixa de ferramentas que parecia ter sido chamuscada pelo fogo do inferno.

FNM na serra

- Essa é de lascar – pensou o viajante. Como? Não vi nada na mão desse sujeito antes? Ele até tirou o chapéu pra me cumprimentar… e agora aparece uma caixa de ferramentas!… – pensava assim baixinho enquanto examinava de cima à baixo aquela figura à sua frente, imaginando mil possibilidades.

O homem mais uma vez interrompeu seus pensamentos e com uma ar despreocupado, daquele jeito de quem já está acostumado com o espanto alheio, disse:

- Abra aí o capô… acho que sei o que é o defeito.

- Ah, não?! Peraí?! Como esse sujeito sabe o defeito se ele nem olhou nada ainda – pensou resmungando o pobre coitado, mas de um jeito que o homem à sua frente pode ouvir o que dizia.

- Não!… É que eu estava passando aqui na beira da estrada quando vi seu caminhão aos solavancos e com um ronco esquisito. Já sou acostumado com isso. Tenho muita experiência no assunto e já já tudo se resolve – atalhou o homem.

- Mecânico… todo arrumadinho… no meio da noite sozinho nesse sertãozão? Isso parece coisa do outro mundo – Pensou o caminhoneiro enquanto abria o capô do seu velho caminhão.

O homem se debruçou sobre o motor e por um momento os dois ficaram bem próximos lado a lado examinando a situação. O motorista pode olhar meio de soslaio para aquele ajudante misterioso e ficou ensimesmado com aquela tez pálida que se destacava na escuridão da noite. Os olhos pareciam como que desfocados numa dança descompassada pelas órbitas oculares. E havia um cheiro, meio que gasolina, meio que fumaça e carvão.

De repente o homem tirou uma chave inglesa da maleta de ferramentas, tocou não sei em quê, porque ele não viu direito, e virando-se para ele disse:

- Dê partida, companheiro. Acho que tá bom…

- Nossa Senhora de Sant’Ana, ainda por cima faz mágica – balbuciou enquanto se apressava para cumprir a ordem.

Vrrruuummmmm… Rogrogrogrogrogrogrog… Respondeu o caminhão como se pudesse mostrar satisfação.

- Pronto! Agora tá tudo certinho… pode seguir viagem tranquilo – gritou o homem lá fora sobrepujando o barulho do motor.

- Pera aí – disse o caminhoneiro. – Quanto eu lhe devo?

- Deve nada não, foi um prazer ajudar. Precisei de ajuda um dia e não achei quem me socorresse. Sei como são essas coisas. Siga em paz e boa viagem!

- O cidadão não quer nem uma carona? – insistiu

- Ah, não! Isso eu não preciso não, meu destino é outro.

- Ah, tá bom então. Mas insisto ao menos em pagar o serviço – retrucou o outro.

- Bom… o Sr. vai passar em Acarí? – perguntou o mecânico.

Não… ele não ia. Pelo menos não era o plano, pois tinha uma carga de retorno de Jardim do Seridó para Caicó. Mas, quem sabe, poderia permutar essa carga com outro companheiro de frete, e seguir para Acarí. De lá poderia subir pra Currais Novos e seguir pros rumos do Açu, sem precisar retornar a Caicó. Afinal se aquele homem lhe ajudou nessa situação tão difícil, bem que ele poderia mudar seus planos e ver em que poderia lhe ser útil indo até Acarí. Pensou tudo num fração de segundo e respondeu:

- É… vou passar em Acarí. O Sr. quer alguma coisa de lá? – perguntou.

- Bom, o  cidadão pode me fazer um grande favor. Já estou fora de casa faz um tempo e se o Sr. puder passar lá em minha casa pode deixar o pagamento do serviço com a minha senhora. Pode ser? – disse o homem de branco.

- Claro – respondeu – não tem problema algum. Passo lá e deixo o dinheiro. Qual é o endereço?

- Minha família mora na Rua Anchieta n° 1000. É fácil de achar. Obrigado então! – agradeceu o homem com um sorriso, e os seus dentes pareciam dançar no ar, como se não estivessem apoiados em parte alguma do corpo.

O velho caminhoneiro já aboletado no caminhão engatou a primeira marcha, acenou agradecendo àquele desconhecido e subiu devagarinho a serra ouvindo o ronco tão familiar do motor. Enquanto isso olhava pelo retrovisor com certa curiosidade sobre aquele sujeito tão prestativo. Desviou o olhar por um momento para a estrada a sua frente e ao espiar de novo pelo retrovisor não viu mais nada. Nem sinal do sujeito. Um arrepio se formou na sua nuca descendo espinha abaixo. De repente se deu conta que nem havia perguntado o nome do sujeito, e afinal o que ele fazia ali sozinho àquela hora da noite.

Enquanto seguia em sua subida vagarosa olhou para o lado contrário da estrada e vislumbrou pelo facho de luz dos faróis de seu caminhão os restos de um automóvel. Não deu pra identificar que tipo de automóvel era, mas deu pra ver que estava virado de pneus para o ar e todo queimado.

Quis pensar à respeito, mas achou por bem desviar o pensamento no esforço tremendo para não se sentir apavorado. Era como se dissesse para si mesmo: home num tá vendo que essa coisa toda tá muito esquisita…

Seguiu noite adentro e de manhãzinha já tinha passado por Caicó. Daí venceu rápido as seis léguas até Jardim do Seridó. Resolveu o que tinha de resolver por lá, enquanto entre carga e descarga entabulou conversa com alguns colegas de estrada sobre o acontecido da noite anterior. Todo mundo achou muito esquisita a história, e uns até disseram que ele tinha visto “alma do outro mundo”. Mas como? pensava ele. O sujeito até consertou o motor de meu caminhão?

Não teve muita dificuldade em permutar o frete, e antes do meio dia já estava na estrada, rumo a Acarí para cumprir a promessa feita ao misterioso mecânico.

Em lá chegando, achou sem dificuldade o endereço: Rua Anchieta n° 1.000. Bateu à porta da modesta casa tipo porta e janela, de onde saiu uma senhora de meia idade vestida de preto. Uma pulga insistente lhe coçou as orelhas. Já fazia um tempo que aquela pulga estava ali.

- Bom dia, senhor! O que deseja? – falou a mulher.

- ‘Dia… Vim trazer uma encomenda do seu marido…

- De quem, cidadão? – perguntou a mulher com espanto.

- Seu marido, o mecânico. Ele me socorreu essa noite na estrada lá na Serra do Cavalcante.

- Como era o nome dele? – argüiu curiosa e com certo ar de espanto.

- Desculpe, senhora, mas na agonia da hora em nem me dei conta de perguntar – respondeu.

- Ah, tá! Moço, entre por favor.

- Obrigado, senhora. – entrou e sentou-se numa cadeira de balanço que lhe foi indicada.

- O senhor aceita uma água, um café?… Margarida… trás um cafezinho novo aí pro moço. -  Gritou em direção à cozinha antes mesmo dele responder se queria ou não. – Trás logo um água bem fria também. Ele vai precisar – continuou.

- Que história é essa de “eu vou precisar”? – matutou o caminhoneiro.

Margarida era um linda cabocla sertaneja. Mistura de raças que lhe deixara traços de várias origens. Chegou rápido trazendo café bem quentinho que naquele época sempre se tinha sobre a chapa quente do fogão de lenha. E logo em seguida trouxe a água fresquinha tirada de um pote de barro. Deu até pra ouvir o mergulhar do caneco no pote: tchibuuummm!

Olhando bem para Margarida, o moço divisou nitidamente uns traços que já lhe era familiar. E como fosse muito cortês arriscou:

- Voce é uma moça muito bonita, e parece muito com seu pai.

A moça assentiu com a cabeça e nesse instante um olhar de tristeza a fez ficar cabisbaixa.

Nesse momento o caminhoneiro examinou em volta daquele jeito que todo mundo faz quando entra na casa de alguém pela primeira vez. Numa das paredes reconheceu num retrato emoldurado em dourado o seu amigo mecânico trajando o mesmo terno de linho branco e chapéu panamá.

Percebeu que a senhora à sua frente o olhava fixamente com um jeito de preocupação e pena.

Sem mais demora, enfiou as mãos nos bolsos e retirou o dinheiro que já havia separado para entregar, quando foi interrompido pela mulher:

- O senhor tem certeza que foi meu marido que lhe socorreu e o mandou aqui me entregar o pagamento? – perguntou a senhora.

- Claro! É aquele ali da foto na parede. – respondeu.

A mulher recebeu o dinheiro, e com um olhar entristecido disse:

- Cidadão… o meu marido… esse que o senhor vê aí na foto… ele morreu faz quase um ano.

- Foi ali mesmo onde o senhor disse que o encontrou noite passada. – continuou.

- Nós estávamos indo para o casamento de um irmão dele em São Bento. O carro derrapou, ele perdeu o controle e caímos na ribanceira. Eu e minha filha escapamos porque fomos lançadas para fora do carro, mas ele ficou preso lá dentro. O carro pegou fogo e ele morreu queimado. Gritava muito e não apareceu ninguém pra ajudar.

- Foi terrível mesmo. Desde então ele tem aparecido todo final de mês para algum viajante. O moço não é o primeiro a vir aqui trazer dinheiro para nós mandado por ele. Agente aqui é pobre. E esse foi o jeito que ele arranjou de continuar ajudando a família.

O impacto daquela história no pobre caminhoneiro foi enorme. Ficou gelado da cabeça aos pés. Pensou em desmaiar mas segurou a onda de calafrio que lhe percorria o corpo.

Margarida lhe serviu o copo de água fresca, e todos aguardaram em silêncio enquanto ele se recompunha. Pareceu um eternidade num limbo gelado e escuro da sua mente.

Finalmente, o moço disse com dificuldade:

- Pois bem… a encomenda está entregue. Meus sentimentos, senhora.

Todos em silêncio, e o moço acenou educadamente levantando-se devagar ainda com o coração aos saltos. Despediu-se e virou-se para sair, descendo logo os degraus da calçada que davam para a rua.

Entrou devagar em seu caminhão. Deu partida e acenou mais uma vez para aquelas duas mulheres solitárias.

Não soube precisar bem o que se passava em sua cabeça. Não sabia se estava apavorado ou penalizado, ou as duas coisas.

Seguiu devagar seu caminho para Currais Novos e de lá para o Açú. Foi uma viagem longa. Não tanto pela distância, mas pelo sentimento estranho que ocupava sua mente. A cada curva da estrada tinha a impressão que ia se deparar com aquela figura bem arrumada com um chapéu panamá nas mãos.

Essa mesma impressão continuou a acompanha-lo nas viagens seguintes. Adquiriu um medo particular de pegar a estrada à noite, mas o dever de ofício o obrigava a isso.

Certo tempo depois. Talvez cerca de um mês daquele fato bizarro, lá estava ele de novo na subida da Serra do Cavalcante em uma noite fria e chuvosa.

Ocorreu-lhe olhar para os lados da estrada, mas seu instinto de preservação o fazia manter os olhos fixos à frente. Em dado momento pensou ter visto algo que lhe chamou a atenção, mas fixou novamente o olhar na estrada mantendo sempre seu limite de visão no facho dos faróis de seu velho caminhão. Rezava baixinho, pedindo proteção ao seu São Cristovam e sua miríade de sombras projetadas no painel da boléia. Como não parecesse suficiente trazia amarrada ao pulso uma imagem da Gloriosa Nossa Senhora de Sant’Ana.

Não pode evitar ver o carro queimado e abandonado na ribanceira logo à frente. Estava pálido e agarrava com força o volante como um náufrago agarra-se à um barril que flutua.

De repente, falou sem querer, como que por impulso:

- Tudo bem companheiro. Vou passar em sua casa e deixar uma ajuda pra sua família.

Aquela frase teve sobre ele um efeito tranqüilizador. O medo e a angústia se foi, e seguiu a viagem sem problemas.

Ao amanhecer chegou em Caicó, descarregou seu caminhão, e logo estava em busca de um frete que lhe permitisse passar por Acarí. Assim feito, partiu antes da hora almoço, como se tivesse pressa em cumprir sua segunda promessa ao mecânico morto. Logo chegou a Acarí, seguindo direto para a casa da família desamparada.

Foi recebido com certa alegria e espanto pelas duas mulheres, imaginando elas talvez que o pobre coitado tivesse novamente encontrado a visagem da serra.

Ele, meio desconcertado, entregou um pequeno maço de dinheiro sem dizer muita coisa. Tomou um bom café bem quentinho e água fresca do pote. Despediu-se da senhora e da moça Margarida, seguindo sua jornada.

Elas não perguntaram nada. Nem ele tampouco disse qualquer coisa a respeito de sua visita. Ficaram com a sensação que talvez o pobre moço não quisesse tocar num assunto tão assustador.

Com o passar do tempo a visita do caminhoneiro àquela família se tornou constante. A cada final de mês, religiosamente, ele passava por lá e deixava algum dinheiro. Mas nada falava se ainda havia encontrado o tal mecânico na estrada. Mas a viúva percebera que desde que aquele moço passara a visitá-las todo final de mês, nunca mais nenhum motorista desavisado aparecera por lá contando a história de que foi socorrido por seu finado marido na subida da Serra do Cavalcante.

Foi assim que após alguns meses de visita e apoio financeiro, o caminhoneiro foi se tornando um amigo confiável. E depois de certo tempo, o coração de Margarida começou a bater num ritmo diferente cada vez que ele aparecia por lá.

Fato é que um dia se casaram. E a aparição da subida da serra nunca mais foi vista. A não ser pelo caminhoneiro que no dia do seu casamento com Margarida viu aquele cavalheiro distinto, postado ao lado da noiva, vestindo um terno de linho branco, e com um largo sorriso que parecia suspenso no ar acenou-lhe educadamente com um chapéu panamá nas mãos para logo desaparecer.

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Entre escombros e malassombros de Moacir Santos é licenciado sob uma Licença Creative Commons Attribution-NonCommercial-NoDerivs.