Uma homenagem ao meu pai: um contador de estórias de mão cheia, que trazia em seus contos malassombrados a melancolia da eterna saudade que sentia de Caicó, sua Terra Natal.

sábado, 24 de abril de 2010

Irmão das Almas

Foi na época da farinhada, lá na Fazenda Cabrinha de Azevêdo em Carnaúba dos Dantas, há muito tempo atrás, que apareceu um sujeito solitário e trabalhador que era danado! Mostrou-se também um cabra valente, sem medo de nada, mesmo de coisas do outro mundo. Chamava-se Severino.
Era comum durante a farinhada que todos os parentes e empregados disponíveis ajudassem na tarefa. A isso chamava-se ajutório. Isso porque fazer farinha não era a atividade principal da fazenda. O grosso das atividades era o cultivo do algodão mocó e ainda um pouco de criação de gado que vinha desde os tempos remotos da colonização do Seridó, mas que aos poucos vinha sendo recentemente substituída pelo "ouro branco" da caatinga. Esse sim, o algodão mocó, dava todo o lucro da fazenda. O resto, cana, rapadura, melaço, o feijão ligeiro e o milho de sete semanas, e outros produtos da roça eram só para a subsistência.
 Tanto que depois de descascada e limpa, a mandioca era transportada para a Fazenda Antônio de Azevêdo onde havia uma casa de farinha rústica.
O trabalho era duro! Garantir suprimentos para todo o ano era essencial naquela época e naquelas paragens distantes cuja ligação com o mundo exterior dependia quase que exclusivamente de tropeiros. Assim toda a ajuda era bem-vinda. E a chegada daquele forasteiro bem disposto ao trabalho pareceu uma dádiva dos céus.
O dia começava cedo, antes mesmo do amanhecer. Lá pelas nove horas parava-se para o almoço. Esse geralmente era composto de feijoada, farinha, rapadura, frutas e café. Retomava-se em seguida o trabalho que só era interrompido por volta da duas da tarde para o jantar. Já de noitinha havia a ceia, onde era servida poções generosas de coalhada.
Naqueles tempos era comum a figura do contador de histórias. Pessoa contratada para animar os trabalhadores reunidos na árdua tarefa de lavar e descascar a grande quantidade de mandioca colhida para fazer a farinha. Chamava-se Zé Romão. As histórias eram de todo tipo, desde que seu conteúdo respeitasse a audiência familiar. Mas das que eram mais apreciadas estavam as histórias de malassombro, especialmente quando contadas à noitinha durante a ceia e depois dela, pois era comum que muitos trabalhadores continuassem por alí mascando seu fumo e pitando, recostados pelos cantos, enquanto descansavam da comilança da ceia.
Numa dessas noites, quando a friagem do sertão começava a substituir os vapores sufocantes do calor do dia, Zé Romão começou a falar de um certo funeral misterioso que acontecia de quando vez lá pelos baixios da várzea do Riacho Carnaúba. Contava ele que nas noites de lua nova, lá no meio dos carnaubais ainda comuns naquela época, aparecia umas pessoas carregando nos ombros um caixão. Levavam tochas acesas para alumiar o caminho, que se podiam ver do lugar onde estavam agora.
No meio da noite ouvia-se um grito alto e longo, soando como se estivesse bem longe, e carregado de um eco sinistro: CHEGA IRMÃO DAS ALMAS!
 Passava-se um tempo e a voz continuava: CHEGA IRMÃO DAS ALMAS!... CHEGA IRMÃO DAS ALMAS!... E assim continuava noite adentro até que aquele cortejo fúnebre sumia entre os carnaubais. Assim como aparecia ia embora. Ninguém sabia dizer nada à respeito. Uns poucos trabalhadores que se aventuraram a ir lá saber alguma coisa jamais retornaram para contar a história. Era um mistério que se repetia de tempos em tempos.
Severino, valente que era, terminou de ouvir aquela história com toda a atenção e ficou encafifado! Grunhiu então com seu cigarro de palha preso aos dentes: - se isso acontecer enquanto eu tiver por aqui vou lá ver o quê é. Zé Romão olhou pra Severino com um ar de zombaria provocativa e disse: - Home, tu num brinca com essas coisa... tu num sabe nem se é desse mundo...
- Num tenho medo de nada, sô - respondeu Severino.
- E os home que foro lá e num voltaro? - inquiriu Zé Romão.
- Vai vê se cagaro de medo e ficaro cum vergonha de voltar... - falou sorrindo Severino, o que provocou uma gargalhada geral de todos.
- É... cê que sabe... eu é que num quero saber dessas coisa de alma do outro mundo... - retrucou Zé Romão. - Num é bom mangar dessas coisa, não... - completou.
Depois disso fez-se silêncio, e aos poucos todos se retiraram para dormir.
Passou-se o tempo...
Certo dia, quando todos se preparavam para a ceia e já se fazia escuro, alguem chamou a atenção de Severino apontando na direção dos carnaubais. 
- Olhe, veja ali... - apontou.
- Num acredito... Vige Nossa Senhora de Santana! Então é verdade! - exclamou Severino em voz alta chamando a atenção de todos.
As pessoas saíram todas para fora e olharam na direção da várzea do Carnaúba. Lá estava: aquele cortejo fúnebre seguindo entre os carnaubais. Tochas acessas, e nos ombros de quatro homens um esquife. Dava pra ver direitinho... À frente do cortejo um homem gritava com uma voz que parecia sair de uma gruta: CHEGA IRMÃO DAS ALMAS!... CHEGA IRMÃO DAS ALMAS!...CHEGA IRMÃO DAS ALMAS!... CHEGA IRMÃO DAS ALMAS!...
E agora? Que fazer? Ficaram todos atônitos, como se tomados de uma paralisia que gelava do cucuruto até o dedão do pé.
E a voz continuava enquanto o cortejo seguia devagar: CHEGA IRMÃO DAS ALMAS!... CHEGA IRMÃO DAS ALMAS!...CHEGA IRMÃO DAS ALMAS!... CHEGA IRMÃO DAS ALMAS!...
Foi então que algum espírito de porco falou com certo desdém desafiador: - E aí, Severino. Tu num é cabra macho que não tem medo de nada? Vai lá...
 A voz continuava: CHEGA IRMÃO DAS ALMAS!... CHEGA IRMÃO DAS ALMAS!...CHEGA IRMÃO DAS ALMAS!... CHEGA IRMÃO DAS ALMAS!...
Aquilo parecia entrar direto no juízo! Severino sentiu um arrepio, e ao mesmo tempo um desejo irresistível de ir ao encontro daquele funeral. Não sabia explicar, mas era como se aquele chamado do outro mundo fosse para ele. CHEGA IRMÃO DAS ALMAS!... CHEGA IRMÃO DAS ALMAS!...CHEGA IRMÃO DAS ALMAS!... CHEGA IRMÃO DAS ALMAS!...
Vou lá - disse o forasteiro. - Tu é doido home?! Sabe lá que coisa esquisita é aquela?! - exclamou alguém.
 Eu vou... Nossa Senhora de Santana me acompanhe! - respondeu ele.
Sem se importar com os avisos, Severino empertigou-se, ajeitou o facão na cintura, enrolou um cigarro de palha com a maestria de quem faz isso várias vezes ao dia, se benzeu e partiu na direção do baixio sem olhar para trás.
As pessoas acompanharam Severino com o olhar. Viram quando ele atravessou o vau do Carnaúba e adentrou os carnaubais. Viram ainda quando se aproximou do cortejo fúnebre. E aí, tudo sumiu! As tochas se apagaram... a voz parou de gritar... fez-se um silêncio aterrador. Severino nunca mais foi visto por aquelas bandas.
Alguns homens ainda foram lá no outro dia pela manhã. Mas nem sinal de Severino. Nada...
Mandaram avisar o delegado de polícia em Caicó contando o ocorrido. O delegado chegou a mandar um pequeno destacamento para vasculhar o local. Mas nada. Severino sumiu para sempre. Sem deixar rastro.
Durante muito tempo Zé Romão continuou contando essa história por aquelas bandas. Agora com a autoridade de quem tinha presenciado o fato.
Passaram-se os anos. Pelo menos uns dez anos. Certo dia chegou à Fazenda Cabrinha de Azevêdo um tropeiro vindo do Recife. Fazia sempre aquele chão. De Recife descendo pra Goiana ainda em Pernambuco, adentrando então o sertão da Paraiba até alcançar a região atualmente chamada Baixa da Nega, onde nasce o Rio Acauã, seguindo daí o seu curso natural, passando por onde recebe os afluentes  Totoró, Mulungu e  por fim o Carnaúba, já na região do Seridó.
Chegando na fazenda, numa noite quando ouvia o Zé Romão, já velho e alquebrado contar a velha história de Severino, o Irmão das Almas, disse para espanto de todos: - Ah! O Severino? Encontrei com ele em Recife faz dois anos. Tá rico que só a molesta!
Todos os presentes ficaram abismados!
Como assim? - Retrucou o Zé Romão com a voz cansada, mas eufórica.
- Tá lá em Recife. Rico pra daná! Tem uma loja de aviamentos lá na Rua das Calçadas- confirmou o tropeiro.
- Ele me disse que quando seguiu o cortejo fúnebre, chegou junto aos homens que carregavam o caixão, e perguntou de quem era o enterro. Ninguém respondeu nada. Apenas olharam pra ele com um olhar distante como se não vissem nada. - falou.
- E aí? - perguntou alguém.
- Ele achou aquela gente estranha... esquisita... Pareciam não ser de carne e osso. - respondeu o tropeiro.
- Eita danado! Que apuro! - exclamou o Zé Romão. - Continua, tá me deixando nervoso. - pediu.
Apoi!... Entonces ele disse que teve vontade de correr, mas em vez disso criou uma corage que não sabe de onde veio, se aproximou do esquife, e pediu para um dos homens que carregavam o caixão pra ele levar um pouco também. - continuou o tropeiro. - Entonces o home cedeu o lugar pra ele, e ele continuou carregando o caixão um tempão. Ninguém falava nada. Foi aí que chegaram debaixo de uma imbaúba e o cortejo parou. Os home cavaram uma cova. Levou um tempão, tudo em silêncio, sem palavra... Enterraram o defunto... e aí aconteceu uma coisa que deixou ele gelado. - contou o tropeiro, dando uma pausa que pareceu uma eternidade.
- Fala logo home, desembucha - atalhou Zé Romão com ansiedade.
- Calma, agora que é o bom - retrucou o tropeiro com um riso maroto no canto da boca, continuando em seguida:
- Severino viu o home que vinha antes na frente do cortejo se virar pra ele e dizer com uma fala esquisita: "como tu não tiveste medo e mostraste ser um varão piedoso e Irmão das Almas, cá está tua recompensa. Cavas onde está enterrado o finado e acharás uma botija com muitas moedas d'ouro. Peço-te, todavia, uma cousa a mais. Que mandes rezar uma missa na Matriz de Santana em Caicó, em favor dest'alma que vos fala. Mas não revelais meu nome a mais nenhuma outra pessoa, a não ser o vigário de Santana.".
Depois disso, conta Severino que tudo sumiu como por encanto. - continuou o tropeiro. - Ficou tudo escuro de meter medo. Então ele tirou do seu imborná uma pederneira. Juntou um pouco de folhas secas e fez uma fogueira. Pegou seu facão da cintura e cavou... cavou... cavou... até bater numa superfície dura. Terminou de desenterrar a botija com as mãos e quase caiu de costas quando viu o tanto de moedas de ouro. Arrumou tudo direitinho fazendo um jirau com pedaços de pau que cortou para poder arrastar aquela botija enorme. Andou sem descansar por umas duas horas no rumo de Caicó. Foi então que parou pra descansar debaixo de um oitizeiro. Quando o dia amanheceu, continuou a viagem para Caicó. Quando chegou lá, foi direto para a Matriz de Santana e encomendou uma missa especial ao vigário. Pagou tudo, se hospedou num hotel e na hora da missa veio assistir. Depois foi-se embora de vez no rumo do Recife. É isso - concluiu o tropeiro.
Ouvindo aquela história fantástica todos ficaram assombrados e ao mesmo tempo espantados com a coragem e o destino do Severino. Cada um queria dizer uma coisa. Falavam ao mesmo tempo.
No meio do burburinho que se formou ouviu-se de rrepente uma voz lânguida e fantasmagórica que cortava os ares: CHEGA IRMÃO DAS ALMAS... CHEGA IRMÃO DAS ALMAS... CHEGA IRMÃO DAS ALMAS...
Correria... alvoroço... com os cabelos em pé todos olhavam no rumo do Riacho Carnaúba. Lá estava... aquele cortejo fúnebre guiado por um homem ou seja lá o que fosse gritando aquela frase sepulcral: CHEGA IRMÃO DAS ALMAS... CHEGA IRMÃO DAS ALMAS... CHEGA IRMÃO DAS ALMAS...
Segundo se conta, não ficou ninguém. Foi uma correria geral... Um Deus nos acuda... Diz-se que tem gente correndo até hoje fugindo desse malassombro.

quarta-feira, 21 de abril de 2010

Hi...hiiiiiiii... vai pro inferno...

São Luís do Maranhão. Final da década de 60. Naquele tempo a cidade de São Luís já deixara de ser há muito tempo a "Atenas Brasileira", e se transformara em "apenas brasileira". Uma grande ilha (Upaon-Açu) perdida na geografia continental do Brasil, já sem a importância de outrora. O "fim do mundo". O exílio missionário de nossa família. Uma nova fronteira.
Naquela época morávamos no Conjunto Yolanda Costa e Silva, no bairro Ivar Saldanha. Fomos dos primeiros moradores daquele novo conjunto de casas populares. Ao contrário das de hoje, eram casas amplas e com bom terreno. A nossa casa tinha três quartos, sala, cozinha e banheiro. Os três quartos ficavam todos alinhados à direita de quem entrava e davam para um largo corredor lateral, um oitão como se diz. O outro lado da casa era germinada com outra. À frente, um bom e espaçoso jardim sempre bem cuidado pela mamãe, e uma garagem. Não havia muros altos. Quê necessidade haveria de enfear a frente da sua casa como se fosse uma fortaleza? Não precisava. Aos fundos, como a declividade do terreno era muito grande, papai construiu uma laje na largura da casa, e assim tivemos um novo grande espaço que servia de cozinha, copa, e no lugar de nós, os meninos, dormirmos à noite em nossas redes. Abaixo dessa laje, ganhamos dois grandes porões. Ah! que maravilha! Era nosso espaço... lá brincávamos de tudo: o campeonato de futebol de botões; carrinhos de madeira e lata que meus irmãos Zezinho e Tod confeccionavam com maestria tal que dava inveja aos meninos ricos com seus carrinhos de loja automáticos.
Bons tempos aqueles! O dia inteiro pra brincar e estudar; uma ou outra pequena tarefa pra ajudar mamãe, mas na verdade dávamos mais trabalho que ajudávamos; e à noite... ah, a noite! A hora mágica! Era a hora de sentar no chão do terraço, todas as luzes da casa apagadas, e ouvir nosso pai, do alto de sua cadeira de balanço travestida de um trono divino de onde emanavam as deliciosas histórias de malassombro.
Não tínhamos televisão. Alíás que eu me lembre, só tinha tv na casa do nosso amiguinho Ademar, hoje um importante empresário do reagge no Maranhão, nosso querido "superpateta", como o chamávamos então. Por conta disso, a audiência lá em casa era grande. A criançada da vizinhança acorria ansiosa para ouvir as histórias. Eram tantas. Parecia existir um repertório sem fim:  "Sinhá Véia",  " O Duque de Piemont", "Irmão das Almas", "O Gigante de Caicó", "A Phantasma", "O Nêgo D´Água do Poço de Santana", "Crisálida Aladim", "A Cruviana", e tantas outras, incluindo uma série chamada "As Histórias do Véi Silivero", um contador de histórias que existiu em Caicó nos tempos em que meu pai era criança.
Como era bom dormir assombrando!... melhor que o Lexotan ou o Prozac de hoje!
Às vezes papai nos pregava peças. Não sei se para dar um intervalo e descansar a voz, ou se para aumentar o clima de suspense! Porque mesmo nesses intervalos ele não deixava a peteca cair. Não se podia dispersar, o clima tinha que ser mantido.
Lembramos em família esses momentos deliciosos de convívio... hoje damos boas risadas quando relembramos esse particular de nossa infância.
Há um episódio em especial que muito nos delicia, que passo a narrar a seguir.
Tod, nosso irmão do meio, sempre foi o mais afoito e destemido de todos. Aprontava muito... se achava a última espiga do milharal. E não por acaso, vez por outra, nós nos juntávamos para aprontar-lhe alguma.
Certa noite, papai interrompeu a história no auge do suspense: 
Tod, vá buscar água bem fresquinha lá no filtro pra mim que estou com muita sede - pediu ele. Não tínhamos geladeira.
Eu não papai - respondeu. - Tá com medo cabra? Cê é tão corajoso - inquiriu o Velho.
Tá bom eu vou - levantou-se resmungando e tomando o caminho do oitão...
Por aí não, cabra. Quero ver voce ir aqui por dentro de casa - Disse papai. A casa estava completamente às escuras, seria um teste de coragem ir lá nos fundos da cozinha buscar água.
Tod foi então, e deu pra ver que ele ia cauteloso, mas barulhento como se assim pudesse espantar os fantasmas de sua mente, certamente todo arrepiado. Demorou um pouco, todos em silêncio. Deu até pra ouvir o barulho da água caindo no copo. De repente ouvímos um grito horrível: AAAAAAAAAAAIIIIIIIIIIIIIIIIII...
E em carreira estabanada chega ele com o copo vazio, pois derramara toda a água no caminho. Sofregando, trêmulo, Tod falou gagarejando a papai que estava sentado impávido em sua cadeira de balanço:
Pap...pap...pai... ti...tinha um... uma a... aa... aaaalmaa... atrá....s do... do fi...fifi...iltro. Ela me... me...me di...sse...sse... "hi...hii...hiiiiiiiiiiiiiii... vai pro in...fe...erno!"
Quá...Quá...Quá...Quá...Quá...Quá...Quá...Quá...! Risada geral... A galera não perdoa!...
Papai, sem Tod perceber, correra pelo oitão e se escondera-se atrás do filtro. Se fingiu de alma  cobrindo-se com um lençol branco que não sei se ele já tinha deixado preparado, e correu de volta pra sua cadeira.
Tod, depois de um tempo, entendeu o que tinha acontecido... e se retirou às turras. Logo ele fora cair numa dessas! Quá...Quá...Quá...Quá...!
Assim era nossa infância... feliz e inocente... bons tempos aqueles!

terça-feira, 20 de abril de 2010

O (lobis)homem da mão no saco

A família do meu pai morava na periferia de Caicó, pras bandas da Rua Olegário Mariano, margeando o Rio Barra Nova. Família grande. Tendo como Patriarca o Seu Manoel Januário dos Santos, mais conhecido como Manoelzinho de Madalena, numa alusão típica com a qual os nordestinos alcunham as pessoas referenciando suas origens matriarcais. Como matriarca a D. Hermínia.
Dos muitos filhos, um se sobressaía por suas peripécias, digamos, nada convencionais. Era chegado a visagens. Gostasse ou não, parece que tinha uma predileção por ver fantasmas, coisas do outro mundo. Qualidade (?) essa que herdou dos pais e ao que parece se estendeu a boa parte da família. Era o Tio Pé-de-Graxa. Ou simplesmente Graxa.
Dentre as tantas histórias do folclore macabro sertanejo não poderia faltar a do lobisomem. Claro, com suas adaptações e tempero regional, não era necessariamente um homem transformado em lôbo. Podia ser qualquer bicho sem explicação. Então, se alguém tinha que ver um lobisomem tinha que ser ele: o Tio Graxa.
Essa história se passa nos tempos em que Caicó dispunha de energia elétrica apenas num período do dia, e como ainda hoje acontece em muitas cidades interioranas, a luz, gerada a motor se apagava por volta das 11 horas da noite. Piscava três vezes como sinal de que logo apagaria.
Quem tinha juízo, voltava logo pra casa na primeira piscadela, pois se sabe que as almas do outro mundo têm predileção pela escuridão da noite. Certo ou não, Gilberto Freire já dizia em seu livro "As assombrações do Recife Velho" acerca dessa predileção. De que com  o advento da "luz elétrica" parece que as assombrações sumiram do cotidiano das cidades. Coisa pra se estudar...
Pois bem. Na vizinhança da casa dos "Madalena", como era conhecida a família do meu pai, morava um sujeito esquisito. De fala mansa, poucas palavras, ninguém sabe bem de onde vinha, meia-idade pra mais, solitário, sem família conhecida. Bom sujeito, no entanto. Achegava-se vez por outra nas calçadas da vizinhança, e partilhava do contar de histórias tão típicos da boquinha da noite naqueles tempos onde não havia televisão, e rádio era coisa de rico. Histórias do dia-a-dia, da vida simples das pessoas, e, especialmente, histórias de malassombros. 
Mas o homem tinha uma coisa esquisita: sua mão direita estava sempre dentro de um saco. Um saquinho de algodão costurado como se fosse uma luva, mas sem os dedos, só o saco.
Numa dessas noites, noite de lua cheia, não por acaso as histórias falavam de lobisomens. E o homem da mão no saco ouvia atentamente as histórias contadas sem dar uma palavra, apenas quietinho em seu canto, com um olhar perdido como se viajasse por uma dimensão da sua alma que não podia vir à luz.
Passadas essas primeiras horas do convívio comunitário, Graxa, como bom boêmio que era, não podia se furtar de suas aventuras noturnas. Todo arrumado. Terno de casimira branco, gravata vermelha e sapato bico-de-chocolate, empertigou-se e disse: Mãe, vou dar uma volta por aí - disse aquilo como se fosse algo novo, como se não fizesse isso quase toda noite. Dona Hermínia olhou para o filho inquieto e disse: vê se  volta antes da luz apagar, filho. Cuidado com o lobisomem, porque hoje é lua cheia.
Nunca vamos saber se aquela última frase era uma preocupação real ou só força de expressão, mas aquele povo sertanejo costumava dar peso às suas palavras. Fato é, que assim que Graxa se retirou o homem da mão no saco também saiu. Inventou uma desculpa qualquer e foi-se embora no rumo da sua casa.
Dona Hermínia não gostou do que viu, ou do que sentiu, sei lá. Mas algo lhe dizia que havia alguma coisa, algum mistério envolvendo aquele homem com a mão no saco. Engraçado que ninguém jamais perguntara a ele a respeito daquilo. Por receio ou por respeito isso era lá assunto dele, e ninguém dava maior importância, pelo menos aparentemente, pois havia quem dissesse à boca pequena que aquilo era pra esconder suas unhas gigantescas de lobisomem. Fofocas de comadres!
Graxa se dirigiu como de costume para a Praça da Liberdade. Passear com alguma morena, cortejar outras, jogar conversa fora com os amigos de boemia, tal e tal. Lá perto da hora de as luzes da cidade se apagarem fez o de costume: dirigiu-se ao cabaré de Raimunda Jararaca, que depois veio a ser suas esposa, mas essa é outra história.
Logo ao chegar no cabaré, a luz deu sinal de apagar. pisc... pisc...pisc. Apagou... A noitada continuou à luz de candeeiros....
Lá pela tantas, não se sabe bem que horas, arrumou-se e tomou o caminho de casa. Escuro de meter mêdo, como se dizia. E como sempre nessas horas batia um arrependimento e aquela voz consigo mesmo que dizia: "nunca mais vou fazer isso..." Era sempre assim... pois tinha que atravessar quase toda a cidade no escuro e alguns lugares ou quase todos eram tidos como assombrados, especialmente pra quem tinha essa "vocação" para o sobrenatural. Caminhos mágicos, como se interligados a outra dimensão: o beco do finado Mané Grilo; o beco de Yôyo Aladim, ou beco do esfola bode; o cemitério velho, onde hoje em dia está a Caixa Econômica, o Banco do Brasil, e tantas outras construções novas da Caicó moderna que se alicerçou em fundamentos antigos e insuspeitos; o campo de futebol, que hoje também não existe mais... Tudo isso em completa escuridão. Apenas a lua cheia como um ciclope a observar os incautos transeuntes daquele mundo particular em que se tornava a noite urbana da velha cidade.
Lá ia ele. O Tio Pé-de-Graxa. Cada rua um arrepio. Cada viela uma lembrança macabra. O cemitério... Até chegar ao campo de futebol. A última fronteira que lhe separava da sanidade... da casa de Dona Hermínia. Depois do cemitério, uma corridinha, o mercado público, e estaria em casa, são e salvo.
Mas era um campo de futebol! Grande... largo... quase infinito. Tomou fôlego e seguiu... passos largos, apressados, mas cheio de pose, afinal era o Graxa! Cabra destemido e namorador!
Seguiu sua solidão tendo por companhia sua própria sombra projetada pela lua. A lua estava numa posição em que sua sombra se  estendia longamente se misturando a outras sombras que ele tentava adivinhar o que seria: uma jumenta deitada ao longe... um cão vadio... uma vaca pastando tardiamente... e... o quê é aquilo? - perguntou para si mesmo. - Sei não... parece uma bola... mas é grande...  está vindo em minha direção? está sim!... meu Deus... que coisa esquisita!... - conversava consigo mesmo em voz alta e trêmula.
Aquela coisa, seja lá o que fosse, vinha em sua direção. Seguindo uma diagonal como que para atalhar-lhe o caminho. Ia chegando, ficando maior. Estranho! - pensou ele. - Parece uma bola, mas se mexe como se estivesse viva!
Danou-se a correr... jogador de futebol acostumado àquele campo correu como se fugisse de um marcador.. mas quê... não deu tempo... a coisa chegou perto e se desdobrou como se tivesse pernas. Ele sentiu como uma chicotada em sua perna esquerda. Viu sua calça rasgada e pode sentir o calor do sangue a escorrer pela coxa abaixo. Correu mais ainda tentando escapar. Deu pra ver que a criatura, seja lá o que fosse, desse mundo ou de outro, recolhia-se como uma bola e depois se distendia em tentáculos que pareciam pernas dentadas. Não era hora de estudar o fenômeno, mas de correr. E assim fez, em desabalada carreira em direção de casa.
Vovó Hermínia não dormia direito enquanto todos os seus filhos não tivessem chegado em casa. A porta da casa era do tipo meia-porta. A parte de baixo passada ferrolho e a metade de cima apenas encostada pra que quem chegasse tarde entrasse com facilidade sem ter que acordar ninguém.
Mas Dona Hermínia ouviu a carreira de alguém chegando, e disse como muitas vezes disse na vida: É Graxa! E vem assombrado!... Mal acabou de falar... vrupt! viu aquele marmanjo se atirar feito um saco de batatas pela parte de cima da porta e gritar: Mamãe vi um lobisomem! Ele me atacou! - falou com a voz carregada mostrando a calça rasgada e o sangue na perna. - Vige Nossa Senhora! - Bradou Dona Hermínia correndo para trancar a parte de cima da porta.
Todos acordaram... foi um alvoroço... até tudo se acalmar o dia já estava raiando.
Para a surpresa de todos, daquele dia em diante ninguém nunca mais viu o homem da mão no saco. Assim como apareceu na cidade foi embora. E assim surgiu a história do lobisomem de Caicó.

terça-feira, 6 de abril de 2010

Minha bembena

Lá pelos idos de 1930 havia um tropeiro conhecido por Manoel. Era o Manoel Tropeiro. Gente boa, de natureza tosca e empedernida e ao mesmo tempo singela, tipo próprio daquelas bandas do Seridó, onde o sertão impõe limites quase sobre-humanos a quem se aventura por suas brenhas e furnas.

Naquele tempo, o tropeiro era a salvaguarda de muitos comerciantes das cidades sertanejas, e também das famílias que viviam isoladas nos sítios, fazendas e engenhos da região. 
Nos anos de seca, quando a vida se tornava ainda mais difícil, Manoel Tropeiro era um daqueles bravos sertanejos que passava meses embrenhado nas trilhas de burro em busca de víveres que pudessem suprir os vilarejos e as cidades: charque, feijão macassa, farinha, rapadura, tecidos e outros aviamentos. Desde o Vale do Assú, onde podia obter com mais facilidade os produtos de seu comércio, até as cidades e vilas do Seridó: Caicó, Cerro Corá, Acarí, Carnaúba dos Dantas, Jardim do Seridó, Parelhas, etc. 
Toda a região era percorrida por ele meses à fio, em sua solidão acompanhada apenas pela sua tropa de burros bem aparelhados e supridos. Podia ouvir-se ao longe o tilintar dos sininhos que adornavam sua burra Ambrosina, a matrona da tropa. Sua chegada nessas paragens distantes era sempre aguardada com uma ânsia que se traduzia nos olhares lânguidos, de quem pouco tinha para o exercício do escambo que lhes permitissem saciar a fome, mas que se alimentavam da curiosidade com dócil subserviência de assistir aos comerciantes locais e donos de engenho abocanhar boa parte das mercadorias trazidas nos lombos dos burros, restando-lhes esperar que de resto ainda lhes sobrassem um bem que fosse acessível ao menos para enganar suas necessidades básicas de sobrevivência.
Mas o Manoel Tropeiro era desses que sempre se condoia dos menos abastados. E sempre dava um jeito de suprir uns e outros, fazendo amigos por onde passasse. Isso lhe garantia algumas vantagens: salvo-conduto em situações de conflito; poder arranchar em qualquer lugar; e aqui e ali uma companhia feminina que não fosse sua burra Ambrosina.
Alías, esse era o seu fraco: mulheres! O que era de se esperar de quem tinha uma vida solitária e nômade.
Foi numa dessas viagens, se conta, que lá pras bandas de Timbaúba dos Batistas, naquela época ainda parte do município de Caicó, que Manoel Tropeiro arranchou certa noite perto de um pé de oiticica.
Era uma noite sem lua, mas o céu estrelado conferia uma certa luminosidade que refletia nos granitos dos lajedos, como se as estrelas se multiplicassem no chão, conferindo uma atmosfera de miragens e sombras sobrepostas. Podia-se facilmente vislumbrar visagens que assombrariam os de nervos mais fracos.
Como era seu costume, arranchava cedinho da noite para partir ainda na friagem da madrugada, evitando assim o desgaste dele e dos animais sob o sol inclemente do sertão. Parava também nas horas mais quentes do dia, sempre procurando a sombra doce de um oitizeiro.
Do ponto onde estava arranchado, ao pé da fogueira de pedras e braseiro, podia ver o contorno serpenteante do riacho Tapuio, afluente do Piranhas, em sua agonia de sobreviver naquela aridez sertaneja. 

Seus pensamentos divagavam entre a fome e o cansaço, e a obrigação de cuidar de seus fiéis animais de carga. Entre um pensamento e outro se imaginava embalando-se ao som de uma sanfona e zabumba rodopiando uma linda e "perfumosa" morena em seus braços. Ah! - pensava o solitário tropeiro - daria tudo pra ter uma morena agora comigo!
Mal acabou de fugir-lhe esse pensamento, ouviu um som familiar e bem-vindo. Um som que viajava a galope, amplificado pela vastidão daquele vale: o resfolegar de uma sanfona, o repicar de um triângulo, e a inconfundível marcação da zabumba. Um forró? - pensou...- deve estar longe! - ele sabia quantas léguas distantes poderia viajar aquele som.
Terminou de comer sua carne assada na brasa... tomou um caneco de café bem forte... pegou seu alforje e tirou de dentro um pedaço de fumo em rolo... começou a picar o fumo pra fazer um cigarro sentado em sua rede armada entre os galhos do oitizeiro.
O som convidativo continuava a chegar aos seus ouvidos... quase podia vê-lo serpenteando como o riacho à sua frente. Foi nessa hora que pressentiu aquele vulto se abaixando para entrar sob as frondes da oiticica. Que susto! Não podia acreditar! Ali, na sua frente... num vestido branco cheio de brocados e rendas típicas da região... aquela morena... olhos rasgados... cabelos longos e lisos descendo pelas costas até o tronco... uma mistura típica de raças índias e negras que se fundiram na história do lugar...
Boas noite, moço! Posso me achegar? - exclamou.
Ãh! cacaclaro - gaguejou meio sem jeito. - Se achegue aqui perto do fogo - completou.
Ainda titubeando do susto, levantou-se a arrastou um pedra achatada para a moça assentar-se. Sem dizer uma palavra serviu-lhe uma caneca de café, sentou-se em sua rede, e contemplou aquela belezura de mulher à sua frente banhada pelo bruxulear das pequenas labaredas que chispavam da fogueira de pedras.
A moça tá sozinha nessas parage? - disse se esforçando pra se mostrar calmo, agitado que estava em seu íntimo.
- respondeu ela. - tô indo pra festa lá pras bandas da fazenda Timbaúba. - completou com uma voz macia e insinuante. - O moço não quer ir comigo? - perguntou com aquela voz que penetra nos sentidos mais primitivos da alma dos homens, quase uma convocação.
Manoel Tropeiro sentiu o impacto daquele chamamento atávico. Não podia resistir, embora estivesse ensimesmado da presença daquela moça tão bonita andando sozinha por aquelas bandas. Ficou matutando uns segundos que pareceram uma eternidade... Então falou: a môça tão bonita assim não tem companhia pra ir a uma festa?
É uma festa de casamento. Vai ser muito bom! E o lugar aqui é pequeno, uma casa aqui outra ali... e os moço essa época tão tudo buscando trabalho por aí afora! - respondeu com um certo ar de tristeza, como se uma lembrança ruim assolasse seu pensamento.
Manoel Tropeiro notou seu olhar cabisbaixo e levantando-se da rede como para disfarçar que tivesse percebido sua tristeza repentina, esticou os braços e pernas e caminhou até fora da copa do oitizeiro.
A moça seguiu-lhe os passos. Manoel Tropeiro esticou a vista na direção do som e pode ver bem distante um vulto ou outro de pessoas caminhando na trilha do riacho. Ouviu murmúrios, às vezes gargalhadas viajando pelo vento em sua direção, e atinou que devia ser isso mesmo: havia uma festa em algum lugar, e aquela moça bonita e solitária estava a caminho de lá! Sorte sua, pensou.
Nesse instante, a moça que estava logo atrás dele, tocou-lhe os braços suavemente e segurou-lhe a mão sem dizer nada. Ele sentiu um arrepio gélido a percorre-lhe a espinha, e o farfalhar de um hálito estranho a roçar-lhe a nuca, como se fosse o prenúncio da cruviana.
Não teve tempo de refletir sobre isso. A môça passando à sua frente, abraçou-lhe fortemente e o beijou com sofreguidão. Pobre Manoel! Baixou completamente a guarda e se deixou levar pelo ímpeto de aplacar sua solidão entregando-se loucamente àquele frenesi Nem ao menos sabia o nome da moça, mas que importava? Entre um beijo e outro murmura ao seu ouvido: "minha bembena... minha bembena"
Amaram-se ali mesmo, sob o tilintar das estrelas. Só uma coisa era estranha para ele: sentia muito frio, mesmo com toda aquela atividade frenética. Mas ele imaginou que era apenas o frio da noite que os envolvia naquele lajedo aonde haviam deitado.

Após um tempo, sentaram-se os dois ainda abraçados e a moça murmurava com uma voz meio espremida nos ouvidos dele: "minha bembena... minha bembena" .Era como se  caçoasse amorosamente dele, criando uma intimidade típica dos amantes que se alcunham mutuamente. Ficaram assim por um tempo, sentados e abraçados, murmurando um ao outro: "minha bembena... minha bembena". Daí em diante, só era assim que se tratavam. Um nunca soube o nome do outro. Que importava se eram um para o outro apenas "minha bembena", ou "meu benzinho", no seu dialeto de amor.
Finalmente se puseram de pé. Ele apressou-se em selar sua mula mais veloz e partiu com ela na direção do som festivo que lhe invadia os sentidos. Não era muito longe dali, apenas uma légua, segundo ela lhe dissera. 
De fato, em meia hora de cavalgada chegaram ao lugar. Estava tudo iluminado por muitos candeeiros a querosene. Fogueiras no terreiro. Gente dançando. Outros cuidando da festa: servindo bebidas, assando bodes e carneiros. A casa da fazenda era enorme. Cercada de alpendres erguidos em granito, pé direito alto, muitas janelas e portas trabalhadas em madeira de lei.
Manoel Tropeiro nem percebeu em sua euforia que jamais tinha visto aquele lugar. Ele que era tão acostumado a andar por aquelas bandas. Aquele casarão tão suntuoso! Pensou apenas levemente que talvez não conhecesse tão bem a região como pensava. Vai ver os donos do lugar eram servidos por outro tropeiro, e afinal, não é bom para sua profissão fuçar onde outro colega trabalha.
Mas vez por outra, o Manoel se pegava matutando. Tinha a impressão de que as pessoas lhe ignoravam. Tudo bem! Ele era um estranho mesmo! Mas não era um comportamento típico das pessoas simples do sertão, divagava ele.
Também notou que as pessoas dançavam como se não tocassem no chão! Que coisa?! -  pensava ele. - deve ser efeito da bebida, devo ter passado da conta.
Lá pelas tantas entrou alguém zunindo a galope pelo pátio. Apeou do cavalo. Achegou-se ao dono da festa: um homem alto, branco, bigode bem acentuado, de cabelos lisos e curtos, meio agalegado, como se diz na região.
Houve uma certa agitação seguida de uma comoção geral. Falava-se aqui e ali. O noivo, que até então Manoel nem havia notado, pois estava distraído com a festança, entrou correndo e chorando para dentro do casarão. Seguiu-se um silêncio sepulcral e a ordem: a festa acabou! Não vai haver mais casamento!
Imediatamente toda a família se retirou. Fecharam-se as portas do casarão, e as pessoas atônitas e aos cochichos começaram a ir embora. Como num passe de mágica, já não havia ninguém, nem música, nem murmúrio algum. Apenas Manoel Tropeiro ainda aturdido e sua companheira estavam de pé abraçados.
A moça então sussurrou-lhe aos ouvidos: a noiva morreu! Foi encontrada enforcada debaixo de um pé de oiticica. Parece que um tropeiro errante mexeu com ela, e ela, desonrada se enforcou.
Aquilo soou como um tiro de bacamarte na cabeça do Manoel. Cabisbaixo, tomou sua amada pela mão, montou na sua mula com ela à garupa, e voltaram para seu acampamento.
Lá chegando, e ainda chocado e entristecido pela história que vivenciara, abraçou ternamente sua amada. Choraram juntos e se amaram loucamente entre juras de amor eterno, sussurrando um ao ouvido do outro: "minha bembena... minha bembena".
Cedo da manhã, ainda escuro, Manoel Tropeiro acordou sentindo um cheiro estranho, e como se algo lhe perfurasse as costelas. Estava abraçado a um esqueleto vestido com trapos de brocado e rendas.
Deu o grito de horror que foi ouvido ao longe pelos habitantes da região: Ai meu Deus! Santa Virgem Maria!

Levantou-se de um pulo só. Um dos braços da caveira voou longe. Montou a primeira mula que viu, e saiu em disparada no escuro da noite! Atrás dele, uma caveira estalando os ossos corria e gritava: "minha bembena... minha bembena. Não me deixe! Não me abandone! Voce prometeu me amar para sempre!"
Em sua corrida desenfreada, e perseguido pela caveira, Manoel Tropeiro passou pelo casarão onde estivera na festa. Só havia ruínas. Escombros de um passado distante.

Conta-se que até hoje, nas cercanias de Caicó e Timbaúba dos Batistas, em certas noites de maio pode se ver um homem à galope em uma mula, com um olhar feito louco. Parece que a mula nem toca o chão quando cavalga. 

E se a pessoa for corajosa mesmo e esperar um pouco mais vai ver uma caveira passando correndo, estalando todos os ossos e gritando: "minha bembena... minha bembena. Não me deixe! Não me abandone! Voce prometeu me amar para sempre!"
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domingo, 4 de abril de 2010

O oitizeiro assombrado

Era um desses dias de chuvarada no sertão, lá pras bandas de Caicó. Quando isso acontece é chuva mesmo: um toró!
Mas o dia prometia ser ensolarado... e desde a madrugada meu tio Pé-de-Graxa saíra para caçar preá com o seu tio conhecido por todos como Tio Bandeco. Eram eles e uma trinca de cachorros desses bons de mato, que não refugam diante dos perigos de uma caçada, e bons pra desentocar um tatu ou peba.
Nesse dia, porém, a trinca refugou... também pudera! Cachorro que se presa sabe das coisas... vê o que ninguém vê... pressente quando a coisa não é desse mundo. Meu Tio Pé-de-Graxa também tinha fama de ver o que ninguém vê.
Então, já de manhãzinha caiu aquele toró. Correram todos a se abrigar debaixo de um frondoso oitizeiro. Tio Bandeco entrou primeiro. Afoito, foi logo se encostar no tronco da árvore chamando o Pé-de-Graxa:
- Vem logo, sô... que cê faz aí na chuva que não entra logo?
- Nada tio - respondeu ele. - Num tô com vontade de entrar, a chuvinha inté que tá boa! - falou assim com um jeito meio desconfiado, o rosto pingando de suor apesar da chuvarada, e com os olhos meio esbugalhados.
Enquanto isso, a trinca de cachorros também não entrou debaixo do oitizeiro. Uns rosnavam, o outro latia...
Cês são uma cambada de besta - retrucou Tio Bandeco enquanto tirava do alforje um rolinho de fumo pra mascar..
- É... melhor ser besta mermo nessas hora - pensou alto Tio Pé-de-Graxa, enquanto a cachorrada ficava ainda mais agitada.
- Por que cê tá falando isso? - perguntou intrigado o Tio Bandeco. - Nada não. - respondeu Graxa.
E assim ficaram o tempão que durou aquela chuva: Graxa encismado pegando chuva; a cachorrada latindo e rosnando; e Tio Bandeco gozando da cara deles encostado no tronco do oitizeiro e meio dependurado com a mão agarrada a um galho.
Passada a chuva, Graxa todo ensopado chamou o Tio Bandeco: vamo que já dá pra seguir viage. - É... - disse o Tio Bandeco. - Eu todo sequinho e voce e essa cachorrada tudo encharcado. Que deu nôces?
Cê num viu não, tio? - falou o Graxa. - Viu o quê, Graxa?
Os cão latindo, sô... rosnando danado... - falou Graxa com um som gutural saindo quase forçado da garganta.
- Cê encostado naquele tronco tava se agarrando no punho da rede de um defunto, sô... um defunto feio, quase todo podre, e vc lá agarrado na rede e mascando fumo... cruz credo!
- Cê tá brincando, Graxa! - exclamou assustado o Tio Bandeco.
- E eu sô lá home de brincar com essas coisa do outro mundo, tio? - retrucou Graxa.
Mal Graxa acabou de falar o Tio Bandeco desatou numa carreira que levantou até pó do chão molhado...
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Entre escombros e malassombros de Moacir Santos é licenciado sob uma Licença Creative Commons Attribution-NonCommercial-NoDerivs.