Nêgo D'Água, Mãe D'Água, Yara, Rainha das Águas etc, são variações afroameríndias, não obrigatoriamente derivadas, dos mitos eurocaucasianos das sereias e outros seres mitológicos dos mares e rios. A mitologia de diversos povos e culturas é riquíssima na variedade de manifestações folclóricas sobrenaturais envolvendo criaturas ligadas ao meio líquido. Já que somos "ilhas humanas" cercadas de água por todos os lados que impõe limites à nossa presunçosa supremacia sobre todos os seres do planeta, é natural que nossos medos nos assombrem em formas de figuras fantásticas, mesmo quando nosso conhecimento acumulado sobre o mundo natural estenda cada vez mais esses limites.
A água nos desperta um sentimento atávico do qual não podemos nos libertar: dela dependemos; ela nos limita; ela nos assombra. O mítico se funde ao místico, e surgem devoções como forma de nos fazer transitar nesse elemento, com ele conviver e apaziguar seus "demônios".
Assim é que em todo canto que se ande há uma história mítica para explicar a origem das coisas, e essa mitologia envereda pelo misticismo religioso de um matiz qualquer, a despeito do que digam os fatos históricos sobre tais origens.
Há os que acreditam em tais manifestações sobrenaturais e reivindiquem para si os poderes místicos que permitem intermediar, para o bem ou para o mal, as relações desse mundo sobrenatural com os humanos. Em tal categoria estão os bruxos, magos, pajés, feiticeiras, pais de santo, mães de santo e até padres e pastores evangélicos em alguns casos. Há os que acreditam, e seguem aos seus líderes místico-religiosos em maior ou menor grau. Há os que estão no meio do caminho, e na dúvida, seguem o dito popular: "acendem uma vela pra Deus e outra para o Diabo". E há os céticos, para quem tudo isso não passa de uma construção da psique humana.
E voce? Em que categoria se encaixa?
A Caicó dos anos 40 do século passado ainda carregava no imaginário do seu povo as lendas da sua origem, a despeito da história oficial da sua fundação que dá conta ter surgido das primeiras datas de sesmarias concedidas a dignatários da Colônia, que empreenderam a colonização do sertão "pelas patas de gado", e da construção da Casa do Cuó, fortificação erigida para aquartelar as tropas coloniais empenhadas nos combates da chamada "Guerra dos Bárbaros", travada contra os gentios bravios do sertão da Nação Tarairiú (Jandui, Ariú, Pega, Canindé, Genipapo, Paiacú, Panati, Caratiú e Corene), ainda no século XVII.
Entre as lendas, consta a de um vaqueiro portugues que em busca de uma rês extraviada deu de cara com um touro mítico que habitava um mofumbal. O touro seria uma encarnação do deus Tarairiú que defendia aquelas plagas. O dito vaqueiro, perseguido pelo touro e sem encontrar a saída daquela quiçaça, ajoelhou-se em prece a sua santa de devoção, a Nossa Senhora de Sant'Anna, prometendo-lhe que se encontrasse livramento construiria no local uma capela em sua homenagem. A partir daí, o touro encantou-se nas águas de um poço ali próximo, e o vaqueiro, conseguindo sua salvação retornou mais tarde para cumprir sua promessa, erigindo no local uma capela dedicada à santa.
Uma variação da mesma lenda, conta que o vaqueiro buscava desesperadamente por água para o seu gado em tempos de uma seca terrível. Fez promessa semelhante à sua santa, caso encontrasse água, e que essa água nunca acabasse. Tendo encontrado um poço que parecia não secar nunca, cumpriu a promessa e erigiu a capela dedicada a Nossa Senhora de Santana. A quem diga que a capela original dedicada a Nossa Senhora de Sant'Anna seja a atual Igreja de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos, mas não há consenso entre os historiadores sobre isso.
O poço passou a ser chamado o Poço de Sant'Anna. Ao que parece, tal poço era ligado por uma furna submersa ao Rio Seridó, razão pela qual nunca secava mesmo nos periódos de seca mais inclementes. E nessa furna habitavam criaturas míticas: uma serpente gigantesca, em que o touro havia se transformado, e outras entidades igualmente mágicas. Mas havia um porém. Diz a lenda que se o poço um dia secasse, ou se numa enchente suas águas chegassem ao altar-mor da Igreja de Nossa Senhora de Sant'Anna, a serpente sairia de sua morada e destruiria a cidade.
Fato é que em 1924 ocorreu uma cheia dessas proporções. E mais tarde, já na década de 30, o poço secou por completo trazendo à mostra sua furna antes submersa. Todo o povo se ajuntou para ver a furna, numa expectativa de medo, curiosidade e devoção. A cidade não foi destruída em nenhuma das ocasiões, nem se viu as tais criaturas. O povo, em seus misticismo, atribuiu a salvação da cidade à intervenção da santa padroeira.
Pois bem!... Em meados de 1940 havia um sujeito boa pinta, metido a boêmia, de boa voz e por isso locutor da rádio local, alfaiate de profissão, conhecido por Zé Madalena. Filho de família pobre da periferia dos arredores do Rio Barra Nova, desde cedo dedicou-se a a aprender o ofício de alfaiate, sem descuidar dos estudos.
Como naqueles tempos a roupa se mandava fazer, o ofício de alfaiate era promissor, ao menos para o patrão dono da oficina, onde não faltava serviço. Era comum, pelo acúmulo de serviço e prazos de entrega honrados com presteza, que se fizessem serões noite adentro para garantir a demanda.
A cidade, muito quente mesmo à noite em época de verão, deixava o pobre Zé Madalena exaurido. Ainda mais somando-se ao calor do clima o calor do ferro em brasa que usava para arrematar e passar os ternos de linho e casimira inglesa. Por isso, após a labuta dos serões, era costume ir junto com os colegas buscar a refrescância dos mergulhos no Poço de Sant'Anna já tarde da noite, antes de irem para suas casas.
Numa dessas noites, Zé Madalena ficou até bem mais tarde que os outros em seu trabalho. Quando resolveu ir embora, sufocado pelo calor, não pensou duas vezes em ir ao Poço de Sant'Anna se refrescar.
Era noite de lua cheia. Podia-se ver os reflexos da lua tremeluzindo naquelas águas antigas do poço. Zé ainda titubeou um pouco sobre sua intenção de nadar naquelas águas. As lendas lhe tomarem a mente de assalto. Sua religiosidade o impelia a não temer.
Nadou, nadou, nadou. Ficou um bom tempo ali contemplando a beleza do lugar. Tudo estava calmo e sereno. Apenas os sons noturnos do bichos: o piar de uma coruja, o burburinho de roedores no mato ralo em volta, e no mais tudo calmo. A cidade dormia entregue ao deus do cansaço. A luz de motor já se apagara. Apenas a lua como testemunha, e a silhueta da imponente Matriz de Sant'Anna.
Quando já estava se dando por satisfeito, Zé Madalena ouviu um burburinho nas águas do poço. Saiu de mansinho. Recolheu suas roupas do chão e as pôs debaixo dos braços levantando a vista para sondar a superfície das águas. Tudo calmo!
Começou a vestir a roupa e ouviu de novo o barulho. Agora mais forte. Como se um peixe grande tivesse vindo à superfície e dado uma rabanada. Não viu nada. Apurou a vista e os ouvidos. E do outro lado do poço à sua frente, divisou um vulto que emergia lentamente. Não viu muito, apenas algo como olhos brilhando envoltos numa forma mais escura que o escuro onde estava.
Pensou que talvez fosse alguns de seus colegas que tendo saído mais cedo do serão aguardaram por ele pra lhe pregar uma peça. Chamou-os pelos nomes, e nada. O vulto continuava lá, no mesmo lugar.
Vôte!... isso é coisa do outro mundo - pensou alto.
Ao assim dizer viu o vulto sair da sombra onde estava deslocando-se em sua direção sob a luz do luar. A visão o deixou estarrecido. Parecia humano, mais se deslocava sobre a água de braços abertos aparecendo apenas do tronco para cima. A água que a deslocava chegou em ondas a seus pés e nesse momento Zé Madalena foi invadido pelo medo e a certeza de que aquela criatura ou seja lá o que fosse estava mesmo vindo em sua direção. Sem muito tempo, vestiu-se às pressas e saiu correndo gritando: é o nêgo d'água.
Se Zé Madalena era cético ou não eu não sei. Mas desse dia em diante passou a ser mais cauteloso com as histórias e as lendas que cercavam sua cidade. Mais tarde, muito mais tarde, viria a ter outros encontros escabrosos e sem explicação.
Mas isso é outra história.
E voce? Em que categoria se encaixa?
A Caicó dos anos 40 do século passado ainda carregava no imaginário do seu povo as lendas da sua origem, a despeito da história oficial da sua fundação que dá conta ter surgido das primeiras datas de sesmarias concedidas a dignatários da Colônia, que empreenderam a colonização do sertão "pelas patas de gado", e da construção da Casa do Cuó, fortificação erigida para aquartelar as tropas coloniais empenhadas nos combates da chamada "Guerra dos Bárbaros", travada contra os gentios bravios do sertão da Nação Tarairiú (Jandui, Ariú, Pega, Canindé, Genipapo, Paiacú, Panati, Caratiú e Corene), ainda no século XVII.
Entre as lendas, consta a de um vaqueiro portugues que em busca de uma rês extraviada deu de cara com um touro mítico que habitava um mofumbal. O touro seria uma encarnação do deus Tarairiú que defendia aquelas plagas. O dito vaqueiro, perseguido pelo touro e sem encontrar a saída daquela quiçaça, ajoelhou-se em prece a sua santa de devoção, a Nossa Senhora de Sant'Anna, prometendo-lhe que se encontrasse livramento construiria no local uma capela em sua homenagem. A partir daí, o touro encantou-se nas águas de um poço ali próximo, e o vaqueiro, conseguindo sua salvação retornou mais tarde para cumprir sua promessa, erigindo no local uma capela dedicada à santa.
Uma variação da mesma lenda, conta que o vaqueiro buscava desesperadamente por água para o seu gado em tempos de uma seca terrível. Fez promessa semelhante à sua santa, caso encontrasse água, e que essa água nunca acabasse. Tendo encontrado um poço que parecia não secar nunca, cumpriu a promessa e erigiu a capela dedicada a Nossa Senhora de Santana. A quem diga que a capela original dedicada a Nossa Senhora de Sant'Anna seja a atual Igreja de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos, mas não há consenso entre os historiadores sobre isso.
O poço passou a ser chamado o Poço de Sant'Anna. Ao que parece, tal poço era ligado por uma furna submersa ao Rio Seridó, razão pela qual nunca secava mesmo nos periódos de seca mais inclementes. E nessa furna habitavam criaturas míticas: uma serpente gigantesca, em que o touro havia se transformado, e outras entidades igualmente mágicas. Mas havia um porém. Diz a lenda que se o poço um dia secasse, ou se numa enchente suas águas chegassem ao altar-mor da Igreja de Nossa Senhora de Sant'Anna, a serpente sairia de sua morada e destruiria a cidade.
Fato é que em 1924 ocorreu uma cheia dessas proporções. E mais tarde, já na década de 30, o poço secou por completo trazendo à mostra sua furna antes submersa. Todo o povo se ajuntou para ver a furna, numa expectativa de medo, curiosidade e devoção. A cidade não foi destruída em nenhuma das ocasiões, nem se viu as tais criaturas. O povo, em seus misticismo, atribuiu a salvação da cidade à intervenção da santa padroeira.
Pois bem!... Em meados de 1940 havia um sujeito boa pinta, metido a boêmia, de boa voz e por isso locutor da rádio local, alfaiate de profissão, conhecido por Zé Madalena. Filho de família pobre da periferia dos arredores do Rio Barra Nova, desde cedo dedicou-se a a aprender o ofício de alfaiate, sem descuidar dos estudos.
Como naqueles tempos a roupa se mandava fazer, o ofício de alfaiate era promissor, ao menos para o patrão dono da oficina, onde não faltava serviço. Era comum, pelo acúmulo de serviço e prazos de entrega honrados com presteza, que se fizessem serões noite adentro para garantir a demanda.
A cidade, muito quente mesmo à noite em época de verão, deixava o pobre Zé Madalena exaurido. Ainda mais somando-se ao calor do clima o calor do ferro em brasa que usava para arrematar e passar os ternos de linho e casimira inglesa. Por isso, após a labuta dos serões, era costume ir junto com os colegas buscar a refrescância dos mergulhos no Poço de Sant'Anna já tarde da noite, antes de irem para suas casas.
Numa dessas noites, Zé Madalena ficou até bem mais tarde que os outros em seu trabalho. Quando resolveu ir embora, sufocado pelo calor, não pensou duas vezes em ir ao Poço de Sant'Anna se refrescar.
Era noite de lua cheia. Podia-se ver os reflexos da lua tremeluzindo naquelas águas antigas do poço. Zé ainda titubeou um pouco sobre sua intenção de nadar naquelas águas. As lendas lhe tomarem a mente de assalto. Sua religiosidade o impelia a não temer.
Nadou, nadou, nadou. Ficou um bom tempo ali contemplando a beleza do lugar. Tudo estava calmo e sereno. Apenas os sons noturnos do bichos: o piar de uma coruja, o burburinho de roedores no mato ralo em volta, e no mais tudo calmo. A cidade dormia entregue ao deus do cansaço. A luz de motor já se apagara. Apenas a lua como testemunha, e a silhueta da imponente Matriz de Sant'Anna.
Quando já estava se dando por satisfeito, Zé Madalena ouviu um burburinho nas águas do poço. Saiu de mansinho. Recolheu suas roupas do chão e as pôs debaixo dos braços levantando a vista para sondar a superfície das águas. Tudo calmo!
Começou a vestir a roupa e ouviu de novo o barulho. Agora mais forte. Como se um peixe grande tivesse vindo à superfície e dado uma rabanada. Não viu nada. Apurou a vista e os ouvidos. E do outro lado do poço à sua frente, divisou um vulto que emergia lentamente. Não viu muito, apenas algo como olhos brilhando envoltos numa forma mais escura que o escuro onde estava.
Pensou que talvez fosse alguns de seus colegas que tendo saído mais cedo do serão aguardaram por ele pra lhe pregar uma peça. Chamou-os pelos nomes, e nada. O vulto continuava lá, no mesmo lugar.
Vôte!... isso é coisa do outro mundo - pensou alto.
Ao assim dizer viu o vulto sair da sombra onde estava deslocando-se em sua direção sob a luz do luar. A visão o deixou estarrecido. Parecia humano, mais se deslocava sobre a água de braços abertos aparecendo apenas do tronco para cima. A água que a deslocava chegou em ondas a seus pés e nesse momento Zé Madalena foi invadido pelo medo e a certeza de que aquela criatura ou seja lá o que fosse estava mesmo vindo em sua direção. Sem muito tempo, vestiu-se às pressas e saiu correndo gritando: é o nêgo d'água.
Se Zé Madalena era cético ou não eu não sei. Mas desse dia em diante passou a ser mais cauteloso com as histórias e as lendas que cercavam sua cidade. Mais tarde, muito mais tarde, viria a ter outros encontros escabrosos e sem explicação.
Mas isso é outra história.
2 comentários:
Aqui, além do causo em si, um pouco de história, sociologia e antropologia. Tá ficando mais refinado!
Olá tio Moa!
Gostei muito de relembrar os contos malassombrados que ouvia do vovô quando criança.
Ainda bem que vc fez esse blog pq eu ja estava esquecendo deles. E como iria contar para os meus filhos? Hehee.
Abraços e saudades... irei aparecer mais vezes por aki.
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