Esta é uma história inusitada. Por muitas vezes a ouvi da boca do meu velho Pai quando criança. No tempo em que televisão era coisa de gente rica, a criançada da vizinhaça se aconchegava ao redor da sua cadeira de balanço, e de olhos arregalados e ouvidos atentos à toda a sonoplastia necessária a incultir o pavor, e o medo, por vezes soltávamos aquelas gargalhadas que escondiam a falta de coragem de cada um. Esta história em particular tinha um propósito claro: ensinar que a mentira pode trazer consequências graves ao mentiroso.
O que tem de inusitada? Ah!… é que nela a personagem principal é o Próprio, o Coisa-Ruim, o Capeta, o Capirôto, o Dandão, o Tinhoso, o Cramunhão, o Demo. Aquele que de tanto atazanar a vida dos homens não lhe faltam adjetivos país afora para nomeá-lo, e assim se poder substantivar o sem-substância.
Também não há nomes a revelar, seja o local do ocorrido ou os outros protagonistas da ação. Uns dizem que foi pras bandas de Acari; outros juram ter sido em Caicó; ou mesmo Carnaúba dos Dantas.
Fato é que havia um velório, com o finado em posição de destaque; um andarilho; um padre; familiares e “A Coisa”.
Conta-se que nos tempos em que a luz de Paulo Afonso ainda não tinha chegado nas bandas do Seridó, morreu um certo fidalgo. Não teve ele em vida lá muita fidalguia, só a que herdara da família. Aliás, ao que consta, herdara não só a fidalguia e a fortuna, mas também a maldade de gerações que serviu para erguer o patrimônio familiar.
Não era portanto um sujeito bem quisto, mesmo entre seus pares. Dissimulado que fora; falseador da palavra dada; enganador e usurpador. A simples menção do seu nome atraia azares, mau-agouro e tantos outros infortúnios. Assim rezava a sua fama de tão perverso era o sujeito. Talvez por isso pouco se sabe sobre os detalhes dessa história.
Fato é que morreu o rico infeliz e maldito. Como era rico, e sempre contribuíra de forma generosa e interesseira com a paróquia local, talvez como forma de barganhar a expiação de suas culpas, ou manter influência sobre os paroquianos, teve o coitado direito a um funeral pomposo.
O esquife luxuoso foi instalado ao pé do altar-mor sob os olhares de Nossa Senhora, não-sei-de-quê, pois isso seria pista demais para revelar o local do ocorrido e provavelmente a identidade daquele que deveria ser esquecido.
A nave do templo parecia maior do que de fato era, de tão poucas pessoas que compareceram a esse “ato de fé e piedade cristã”. Meia dúzia de carpideiras bem pagas, muito bem pagas por sinal, já que fora complicado arrumar quem estivesse disposta a derramar uma lágrima sequer por aquele condenado; uns poucos familiares, que não viam a hora de acabar aquele tormento e tratarem logo do que interessava: a partilha da herança; e o padre, que por dever de ofício nada tinha a fazer senão cumprir sua função ritual e rezar, não pelo defunto, pois aquele finado parecia não ter lugar entre os filhos do Pai, mas para que a paróquia não fosse esquecida das benesses familiares quando da partilha dos bens.
O ambiente estava carregado!… a escuridão da noite lá fora competia com a luminosidade bruxuleante das dezenas de velas acesas no interior da igreja. Os rostos lânguidos e circunspectos dos parentes; o choro bem pago das carpideiras; e o pároco de pé frente ao luxuoso esquife com as mão em prece, deram ao local uma aparência sinistra. Parecia um portal para uma dimensão para além da imaginação.
Já se fazia tarde, lá pelas onze da noite, quando os parentes do morto foram se retirando aos poucos. Afinal não era prudente se fazer tão tarde às ruas, numa época em que as almas do outro mundo costumavam perambular mais à vontade pela vielas e becos escuros. Ainda mais que a fama do finado sugeria maiores cuidados ao aproximar-se o soar das doze badaladas noturnas.
Entre cochichos e olhares de cumplicidade mórbida, foi-se chegando a estas conclusões. Afinal de contas, pensavam, deu-se ao infeliz um velório cristão, sendo o finado merecedor ou não, quem sabe? Melhor então deixar o defunto com os seus pensamentos até a manhã seguinte quando seria o enterro.
Logo a igreja ficou vazia… o silêncio engolia até os pensamentos do velho padre que se movia lentamente em direção à porta principal para trancá-la. Pesarosamente já havia fechado as janelas laterais, e vez por outra espiava de esguelha o finado solitário.
Não se atrevera a fechar a tampa do caixão. Devia ter feito isso enquanto as carpideiras estavam lá – pensou alto – agora faltava-lhe coragem para encarar aquele que em vida fora temido e odiado.
Trancou a porta. Quando já se afastava ouviu uma batida leve: toc toc toc…
Quem é? – bradou um pouco assustado
Louvado seja Nosso Senhor Jesus Cristo – falou uma voz de homem lá fora.
Para sempre seja louvado – completou o padre com a contra-senha.
- Que queres à essa hora meu filho?
- Preciso de um pouso, padre. Venho de longe, muitos dias de viagem, e estou muito cansado.
O padre reconheceu então a voz do andarilho, e logo lembrou que era sempre por essa época do ano que esse pobre filho de Deus aparecia por lá. Era tempo das romarias do Galo, aquele Galo esculpido no monte de mesmo nome em Carnaúba dos Dantas, que competia em adoração com a Nossa Senhora da Vitória. Coisas do sincretismo religioso e superstição sertaneja. E embora o velho pároco não concordasse muito com aquilo já desistira a muito tempo de tentar convencer o povo do sertão de que a tal crença no galo não fazia qualquer sentido e de qualquer maneira servia como uma esperança na alma daquele povo tão sofrido. Não valia à pena apagar esse fumego de fé do coração sertanejo, pensava ele.
O padre abriu a porta bem devagar e espiou com uma vela o rosto sofrido do andarilho e falou:
- Olha filho, não temos aqui onde acomodar voce. Mas se não se importar de ficar aqui mesmo dentro da igreja, tudo bem. Desde que bem cedo, antes da primeira missa voce deixe tudo em ordem.
- Assim tá bom, padre – respondeu o romeiro. Vou me aquietando por aqui num cantinho qualquer, e de manhãzinha o Sinhô nem vai notar que tive aqui. Obrigado, padre.
- Tá bom meu filho. Vou ver se arrumo alguma comida pra voce matar a fome, e um pouco d’água.
- Tem mais uma coisa, filho – falou com uma angústia dessas que aperta o peito e a garganta, o velho e bom padre.
- Hoje tem um velório aqui. Todos já foram embora, mas o finado ainda está lá perto do altar. Se voce não for medroso com essas coisas pode se arrumar em um banco desse aí e passar a noite. – disse isso com um misto de pena e desafio. Talvez acreditado que o pobre coitado desistisse e fosse procurar outro lugar de pousio.
O andarilho meteu a cabeça pelo canto da enorme porta entreaberta e espiou lá bem na frente, perto do altar-mor o caixão aveludado com a tampa aberta. Suspirou fundo, como se pesasse as possibilidade, fez a contas com o seu cansaço e imaginou que não tinha muita importância, porque do jeito que estava logo logo estaria apagado de sono. Matutou mais um pouco e disse:
- pode deixar, padre. Nossa Senhora da Vitória me proteja!
Entrou pela porta. Examinou o local. E por precaução preferiu subir para a galeria que se estendia por sobre a porta principal de lado a lado da largura da igreja. Dalí podia ter uma visão geral de toda a nave do templo. Vai que acontece alguma coisa, ali estaria mais protegido, pensou.
O bom padre saiu em direção à sacristia e não demorou muito voltou com um farnel e uma quartinha de água. O romeiro já instalado na galeria desceu os degraus ao encontro do padre. Pegou a comida e a água e sentado ao chão consumiu sofregamente aquela refeição simples que parecia ter saído diretamente da cozinha do Altíssimo.
Muito agradecido ao padre, pediu sua benção e subiu novamente para a galeria escolhendo um dos bancos de madeira onde se acomodar.
Ficou só. O silêncio… ah, o silêncio… não era como o silêncio do sertão a que estava acostumado, não. Era um silêncio diferente… pesado… entremeado de sons de velhos rangidos e chacoalhares indefinidos. Na penumbra das poucas velas que ficaram acessas ao lado do morto as sombras dançavam e figuras disformes apareciam e sumiam como que por encanto.
Sua mente fervilhava, e o sono, fiel companheiro dessas horas, não deu o ar da graça. Ficou ali deitado nos bancos, de cara para cima, só assuntando. Vez por outra o farfalhar do vôo de um morcego brincava com a sua imaginação. O qui qui qui de ratos despreocupados fazia aquele lugar sombrio parecer uma feira de sábado. E o sono… o sono… o sono… foi aos poucos chegando convidado pelo cansaço que tomava conta do seu corpo. Dormiu, finalmente, o pobre romeiro.
Silêncio total… o silêncio foi ficando mais pesado. Tão pesado que o pobre coitado acordou com aquele peso. Não fazia idéias de que hora era aquela ou de quanto tempo havia dormido. Apenas sabia que acordara com um silêncio estranho. Não havia mais ratos ou morcegos. Podia até escutar o crepitar da velas no altar próximo onde estava o defunto.
Um cheiro… sentia um cheiro ocre no ar. Como se enfiasse a cara num cesto de ovos gorados.
- Argh!… Que fedor insuportável!… – praguejou o infeliz. - Será que o defunto apodreceu de vez?… meu Deus, o defunto… tinha até esquecido dele!
Pensando nisso, levantou-se devagar e foi se esgueirando até a balaustrada da galeria onde estava. Espiou cautelosamente em direção ao altar-mor, e na penumbra da luzes das poucas velas que restavam acesas viu o caixão aveludado ainda aberto mostrado um pouco do perfil do morto. O padre não tivera coragem mesmo de fechar a tampa do esquife. E a cena era de meter medo em qualquer cabra macho.
Enquanto tinha sua atenção voltada para o caixão, o pobre romeiro foi sentindo o cheiro de podridão e enxofre cada vez mais forte. E um barulho como de cascos de bode andando sobre um lajedo foi se aproximando por debaixo de onde estava. O pobre coitado foi ficando gelado de medo e suava um suor frio. Não podia ainda ver o que se aproximava, pois vinha por debaixo da galeria do templo andando bem devagar.
Sentiu um resfolegar frenético como o de um garanhão no cio. O fedor cada vez mais insuportável e, de repente, bem ali, exatamente embaixo do ponto onde estava, pode ver aquela figura horrenda, indescritível e gosmenta. Visto assim de cima e naquela penumbra não dava para distinguir bem o que era. Mas podia ver bem algo como labaredas de fogo saindo dos olhos e da boca.
A criatura seguiu adiante, sempre cautelosa. À medida que caminhava pelo vão central do templo em direção ao altar-mor, foi possível ver que se tratava de uma besta como nenhuma outra jamais vista. Tinha as costas musculosas como um touro; os braços pareciam toras de angico; das nádegas saia um rabo grosso que ia se afinando como se fosse um jibóia; e as pernas, cabeludas, eram arqueadas, meio cambetas, e terminavam em patas como cascos de bode.
- Não pode ser!… – pensou o pobre romeiro. – Devo estar sonhando!…
Mas não estava, não! A criatura aproximou-se do caixão… examinou bem o defunto… Virou-se para trás em direção à galeria… deixou escapar faíscas incandescentes de sua boca num sorriso sarcástico como se soubesse que estava sendo observado. E de súbito, num repente tão rápido quanto um raio, lançou a mão sobre a boca aberta do defunto e arrancou-lhe a língua de um só golpe. Deu um brado estarrecedor erguendo os braços com o órgão ensanguentado nas mãos.
A criatura andou a passos pesados em direção à parede lateral do templo e atirou com força a língua ensanguentada que ficou lá pregada. O sangue escorria até ao chão. Molhando a ponta dos dedos naquele sangue, o Coisa-Ruim escreveu na parede:
“LÍNGUA QUE MENTE E LAVANTA FALSO, NEM NO INFERNO NÃO ENTRA”
E numa gargalhada estrondosa que se fez ouvir muito ao longe, desapareceu como por encanto ao meio de um estrondo ensurdecedor, deixando no ar o cheiro fétido de enxofre.
O romeiro, já não sabendo se estava vivo ou morto de tão paralisado de medo que estava, soltou um brado que rasgou-lhe por dentro a garganta:
- VALHA-ME NOSSA SENHORA!…
Um alvoroço se formou do nada!… O padre vestindo um camisolão irrompeu ao templo assustado… a vizinhança da igreja chegou correndo para ver o que acontecera… o pobre romeiro, tremendo e aos prantos nada falava.
A cenário falava por si… o morto, de boca escancarada e olhos esbugalhados como se tivesse presenciado o horror dos horrores… sangue para todos os lados … e aquela frase escrita na parede em um vermelho vivo.
Alguns notaram que na passarela central da igreja, indo da porta principal ao altar-mor, havia marcas de pegadas. Parecia pegadas de um bode, só que muito maiores.
No caos que se seguiu, resolveram então por um fim a essa história toda. Na mesma hora, ainda escuro da noite, alguns homens mais corajosos pegaram as alças do caixão e partiram para rumo ignorado. Ninguém mais soube dizer em que lugar foi enterrado o defunto infeliz. E a cidade toda, por medo ou por precaução, não falou mais no assunto.
Depois de muito, muito tempo, só um velho e solitário andarilho que dizem ter bem mais de cem anos, resmunga palavras soltas, enquanto vaga sem rumo e sem juízo por esse sertão de meu Deus. Do pouco que se pode entender parece que ele diz:
- eu vi… era o Próprio, o Coisa-Ruim, o Capeta, o Capirôto, o Dandão, o Tinhoso, o Cramunhão, o Demo…
4 comentários:
Muito bom mesmo. Essa era a história que eu mais temia, junto com "Me dá meu aneeeel!"
Vc é craque nos detalhes.
Bjs. Mira.
Cara, que legal !!!
Supera o prórpio pai na riqueza de detalhes.
Tua prosa é agradável e cativante.
Um Abraço.
Tod
Parabéns, Moacir! Que estória interessante! Por vezes, eu me sentia ao lado do andarilho. Formando uma dupla de medrosos que atônitos e catatônicos apenas observava aquela cena surreal. Eita que riqueza de detalhes! Muito boa mesmo!
Waston.
Moa, que história surpreendente! Ainda estou arrepiada de medo! E a riqueza de detalhes é impressionante mesmo! Grande talento herdado de nosso pai.
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