A família do meu pai morava na periferia de Caicó, pras bandas da Rua Olegário Mariano, margeando o Rio Barra Nova. Família grande. Tendo como Patriarca o Seu Manoel Januário dos Santos, mais conhecido como Manoelzinho de Madalena, numa alusão típica com a qual os nordestinos alcunham as pessoas referenciando suas origens matriarcais. Como matriarca a D. Hermínia.
Dos muitos filhos, um se sobressaía por suas peripécias, digamos, nada convencionais. Era chegado a visagens. Gostasse ou não, parece que tinha uma predileção por ver fantasmas, coisas do outro mundo. Qualidade (?) essa que herdou dos pais e ao que parece se estendeu a boa parte da família. Era o Tio Pé-de-Graxa. Ou simplesmente Graxa.
Dentre as tantas histórias do folclore macabro sertanejo não poderia faltar a do lobisomem. Claro, com suas adaptações e tempero regional, não era necessariamente um homem transformado em lôbo. Podia ser qualquer bicho sem explicação. Então, se alguém tinha que ver um lobisomem tinha que ser ele: o Tio Graxa.
Essa história se passa nos tempos em que Caicó dispunha de energia elétrica apenas num período do dia, e como ainda hoje acontece em muitas cidades interioranas, a luz, gerada a motor se apagava por volta das 11 horas da noite. Piscava três vezes como sinal de que logo apagaria.
Quem tinha juízo, voltava logo pra casa na primeira piscadela, pois se sabe que as almas do outro mundo têm predileção pela escuridão da noite. Certo ou não, Gilberto Freire já dizia em seu livro "As assombrações do Recife Velho" acerca dessa predileção. De que com o advento da "luz elétrica" parece que as assombrações sumiram do cotidiano das cidades. Coisa pra se estudar...
Pois bem. Na vizinhança da casa dos "Madalena", como era conhecida a família do meu pai, morava um sujeito esquisito. De fala mansa, poucas palavras, ninguém sabe bem de onde vinha, meia-idade pra mais, solitário, sem família conhecida. Bom sujeito, no entanto. Achegava-se vez por outra nas calçadas da vizinhança, e partilhava do contar de histórias tão típicos da boquinha da noite naqueles tempos onde não havia televisão, e rádio era coisa de rico. Histórias do dia-a-dia, da vida simples das pessoas, e, especialmente, histórias de malassombros.
Mas o homem tinha uma coisa esquisita: sua mão direita estava sempre dentro de um saco. Um saquinho de algodão costurado como se fosse uma luva, mas sem os dedos, só o saco.
Numa dessas noites, noite de lua cheia, não por acaso as histórias falavam de lobisomens. E o homem da mão no saco ouvia atentamente as histórias contadas sem dar uma palavra, apenas quietinho em seu canto, com um olhar perdido como se viajasse por uma dimensão da sua alma que não podia vir à luz.
Passadas essas primeiras horas do convívio comunitário, Graxa, como bom boêmio que era, não podia se furtar de suas aventuras noturnas. Todo arrumado. Terno de casimira branco, gravata vermelha e sapato bico-de-chocolate, empertigou-se e disse: Mãe, vou dar uma volta por aí - disse aquilo como se fosse algo novo, como se não fizesse isso quase toda noite. Dona Hermínia olhou para o filho inquieto e disse: vê se volta antes da luz apagar, filho. Cuidado com o lobisomem, porque hoje é lua cheia.
Nunca vamos saber se aquela última frase era uma preocupação real ou só força de expressão, mas aquele povo sertanejo costumava dar peso às suas palavras. Fato é, que assim que Graxa se retirou o homem da mão no saco também saiu. Inventou uma desculpa qualquer e foi-se embora no rumo da sua casa.
Dona Hermínia não gostou do que viu, ou do que sentiu, sei lá. Mas algo lhe dizia que havia alguma coisa, algum mistério envolvendo aquele homem com a mão no saco. Engraçado que ninguém jamais perguntara a ele a respeito daquilo. Por receio ou por respeito isso era lá assunto dele, e ninguém dava maior importância, pelo menos aparentemente, pois havia quem dissesse à boca pequena que aquilo era pra esconder suas unhas gigantescas de lobisomem. Fofocas de comadres!
Graxa se dirigiu como de costume para a Praça da Liberdade. Passear com alguma morena, cortejar outras, jogar conversa fora com os amigos de boemia, tal e tal. Lá perto da hora de as luzes da cidade se apagarem fez o de costume: dirigiu-se ao cabaré de Raimunda Jararaca, que depois veio a ser suas esposa, mas essa é outra história.
Logo ao chegar no cabaré, a luz deu sinal de apagar. pisc... pisc...pisc. Apagou... A noitada continuou à luz de candeeiros....
Lá pela tantas, não se sabe bem que horas, arrumou-se e tomou o caminho de casa. Escuro de meter mêdo, como se dizia. E como sempre nessas horas batia um arrependimento e aquela voz consigo mesmo que dizia: "nunca mais vou fazer isso..." Era sempre assim... pois tinha que atravessar quase toda a cidade no escuro e alguns lugares ou quase todos eram tidos como assombrados, especialmente pra quem tinha essa "vocação" para o sobrenatural. Caminhos mágicos, como se interligados a outra dimensão: o beco do finado Mané Grilo; o beco de Yôyo Aladim, ou beco do esfola bode; o cemitério velho, onde hoje em dia está a Caixa Econômica, o Banco do Brasil, e tantas outras construções novas da Caicó moderna que se alicerçou em fundamentos antigos e insuspeitos; o campo de futebol, que hoje também não existe mais... Tudo isso em completa escuridão. Apenas a lua cheia como um ciclope a observar os incautos transeuntes daquele mundo particular em que se tornava a noite urbana da velha cidade.
Lá ia ele. O Tio Pé-de-Graxa. Cada rua um arrepio. Cada viela uma lembrança macabra. O cemitério... Até chegar ao campo de futebol. A última fronteira que lhe separava da sanidade... da casa de Dona Hermínia. Depois do cemitério, uma corridinha, o mercado público, e estaria em casa, são e salvo.
Mas era um campo de futebol! Grande... largo... quase infinito. Tomou fôlego e seguiu... passos largos, apressados, mas cheio de pose, afinal era o Graxa! Cabra destemido e namorador!
Seguiu sua solidão tendo por companhia sua própria sombra projetada pela lua. A lua estava numa posição em que sua sombra se estendia longamente se misturando a outras sombras que ele tentava adivinhar o que seria: uma jumenta deitada ao longe... um cão vadio... uma vaca pastando tardiamente... e... o quê é aquilo? - perguntou para si mesmo. - Sei não... parece uma bola... mas é grande... está vindo em minha direção? está sim!... meu Deus... que coisa esquisita!... - conversava consigo mesmo em voz alta e trêmula.
Aquela coisa, seja lá o que fosse, vinha em sua direção. Seguindo uma diagonal como que para atalhar-lhe o caminho. Ia chegando, ficando maior. Estranho! - pensou ele. - Parece uma bola, mas se mexe como se estivesse viva!
Danou-se a correr... jogador de futebol acostumado àquele campo correu como se fugisse de um marcador.. mas quê... não deu tempo... a coisa chegou perto e se desdobrou como se tivesse pernas. Ele sentiu como uma chicotada em sua perna esquerda. Viu sua calça rasgada e pode sentir o calor do sangue a escorrer pela coxa abaixo. Correu mais ainda tentando escapar. Deu pra ver que a criatura, seja lá o que fosse, desse mundo ou de outro, recolhia-se como uma bola e depois se distendia em tentáculos que pareciam pernas dentadas. Não era hora de estudar o fenômeno, mas de correr. E assim fez, em desabalada carreira em direção de casa.
Vovó Hermínia não dormia direito enquanto todos os seus filhos não tivessem chegado em casa. A porta da casa era do tipo meia-porta. A parte de baixo passada ferrolho e a metade de cima apenas encostada pra que quem chegasse tarde entrasse com facilidade sem ter que acordar ninguém.
Mas Dona Hermínia ouviu a carreira de alguém chegando, e disse como muitas vezes disse na vida: É Graxa! E vem assombrado!... Mal acabou de falar... vrupt! viu aquele marmanjo se atirar feito um saco de batatas pela parte de cima da porta e gritar: Mamãe vi um lobisomem! Ele me atacou! - falou com a voz carregada mostrando a calça rasgada e o sangue na perna. - Vige Nossa Senhora! - Bradou Dona Hermínia correndo para trancar a parte de cima da porta.
Todos acordaram... foi um alvoroço... até tudo se acalmar o dia já estava raiando.
Para a surpresa de todos, daquele dia em diante ninguém nunca mais viu o homem da mão no saco. Assim como apareceu na cidade foi embora. E assim surgiu a história do lobisomem de Caicó.
2 comentários:
Mais um conto muito bem escrito. Parabéns. (Corrija: [1] "Lá pela tantas, não se sabe bem que horas. Arrumou-se e tomou o caminho de casa" - vírgula em vez de ponto. [2] "jogador de futebo acostumado àquele campo correu como se fugisse de um marcador.." - futebo = futebol.
Muito bom tio Moa. Parabéns.
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