Uma homenagem ao meu pai: um contador de estórias de mão cheia, que trazia em seus contos malassombrados a melancolia da eterna saudade que sentia de Caicó, sua Terra Natal.

sábado, 23 de outubro de 2010

Tia Adelvina

Não é à toa que chove tanto esses dias

São lágrimas: as que não pude chorar por ti, seja de alegria ou de felicidade, durante os dias de tua vida.

Agora choro na tua morte.

Não pude te conhecer como devia. Minha vida hebréia afastou-me das minhas origens… fiquem como quê sem raízes.

Não pude ouvir tuas muitas histórias de malassombros, teus “causos”, tuas aventuras e desventuras, tuas lamúrias e os teus sorrisos. Nem soube quantas botijas desenterraste… que pena! Não soube quantos fardos de lenha carregaste nas costas, ou quantas pedras de xelita conseguiste catar pelos serrotes do Seridó.

na cozinha

Nem pude te ver labutar junto ao teu fogão de barro, chapa quente que esquentava tua alma e supria a fome dos que dependiam do teu árduo esforço.

Queria muito ter aprendido contigo, mas a vida não deixou. Pude te ver apenas algumas poucas vezes, como que de relance em esporádicas visitas… mas nos faltou a intimidade que aproxima e faz jorrar os encantos da existência de cada um sobre o outro.

Segue teu caminho, Tia… por aqui sigo trilhando a romaria de cada dia no chão pedregoso desse sertão de meu Deus.

Sentirei saudades… a saudade que já existia antes mesmo de partires…

O Barra Nova sentirá tua falta… nas suas cheias, quando vier lamber com suas águas o teu quintal,  perguntará: onde está aquela que tanto rezava para que os céus juntasse suas águas às minhas?!

O Seridó também terá saudades… não te verá mais como desde em menina se banhava em seus poços de estiagem…

O Poço de Sant’Ana, que hoje agoniza, sentirá maior agonia ainda. Lá dentro, bem no meio da furna, o Nêgo D’água e a Cobra Grande se lamentarão por ti.

A procissão de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos seguirá seu caminho tortuoso sem ver teu rosto cheio de fé…

A Catedral de Nossa Senhora de Sant’Ana, em julho não terá a mesma alegria de fé de outrora. Até porque hoje tudo se transformou em Carnaval.

Caicó, a Princesa do Seridó, se foi contigo… hoje tudo é diferente. Mas tua alma é eterna, e Deus em Sua misteriosa Misericórdia há de cruzar nossos caminhos de novo.

quinta-feira, 21 de outubro de 2010

Rejeitado pelo inferno

Esta é uma história inusitada. Por muitas vezes a ouvi da boca do meu velho Pai quando criança. No tempo em que televisão era coisa de gente rica, a criançada da vizinhaça se aconchegava ao redor da sua cadeira de  balanço, e de olhos arregalados e ouvidos atentos à toda a sonoplastia necessária a incultir o pavor, e o medo, por vezes soltávamos aquelas gargalhadas que escondiam a falta de coragem de cada um. Esta história em particular tinha um propósito claro: ensinar que a mentira pode trazer consequências graves ao mentiroso.

O que tem de inusitada? Ah!… é que nela a personagem principal é o Próprio, o Coisa-Ruim, o Capeta, o Capirôto, o Dandão, o Tinhoso, o Cramunhão, o Demo. Aquele que de tanto atazanar a vida dos homens não lhe faltam adjetivos país afora para nomeá-lo, e assim se poder substantivar o sem-substância.

Também não há nomes a revelar, seja o local do ocorrido ou os outros protagonistas da ação. Uns dizem que foi pras bandas de Acari; outros juram ter sido em Caicó; ou mesmo Carnaúba dos Dantas.

Fato é que havia um velório, com o finado em posição de destaque; um andarilho; um padre; familiares e “A Coisa”.

Conta-se que nos tempos em que a luz de Paulo Afonso ainda não tinha chegado nas bandas do Seridó, morreu um certo fidalgo. Não teve ele em vida lá muita fidalguia, só a que herdara da família. Aliás, ao que consta, herdara não só a fidalguia e a fortuna, mas também a maldade de gerações que serviu para erguer o patrimônio familiar.

Não era portanto um sujeito bem quisto, mesmo entre seus pares. Dissimulado que fora; falseador da palavra dada; enganador e usurpador. A simples menção do seu nome atraia azares, mau-agouro e tantos outros infortúnios. Assim rezava a sua fama de tão perverso era o sujeito. Talvez por isso pouco se sabe sobre os detalhes dessa história.

Fato é que morreu o rico infeliz e maldito. Como era rico, e sempre contribuíra de forma generosa e interesseira com a paróquia local, talvez como forma de barganhar a expiação de suas culpas, ou manter influência sobre os paroquianos, teve o coitado direito a um funeral pomposo.

O esquife luxuoso foi instalado ao pé do altar-mor sob os olhares de Nossa Senhora, não-sei-de-quê, pois isso seria pista demais para revelar o local do ocorrido e provavelmente a identidade daquele que deveria ser esquecido.

A nave do templo parecia maior do que de fato era, de tão poucas pessoas que compareceram a esse “ato de fé e piedade cristã”. Meia dúzia de carpideiras bem pagas, muito bem pagas por sinal, já que fora complicado arrumar quem estivesse disposta a derramar uma lágrima sequer por aquele condenado; uns poucos familiares, que não viam a hora de acabar aquele tormento e tratarem logo do que interessava: a partilha da herança; e o padre, que por dever de ofício nada tinha a fazer senão cumprir sua função ritual e rezar, não pelo defunto, pois aquele finado parecia não ter lugar entre os filhos do Pai, mas para que a paróquia não fosse esquecida das benesses familiares quando da partilha dos bens.

O ambiente estava carregado!… a escuridão da noite lá fora competia com a luminosidade bruxuleante das dezenas de velas acesas no interior da igreja. Os rostos lânguidos e circunspectos dos parentes; o choro bem pago das carpideiras; e o pároco de pé frente ao luxuoso esquife com as mão em prece, deram ao local uma aparência sinistra. Parecia um portal para uma dimensão para além da imaginação.

Já se fazia tarde, lá pelas onze da noite, quando os parentes do morto foram se retirando aos poucos. Afinal não era prudente se fazer tão tarde às ruas, numa época em que as almas do outro mundo costumavam perambular mais à vontade pela vielas e becos escuros. Ainda mais que a fama do finado sugeria maiores cuidados ao aproximar-se o soar das doze badaladas noturnas.

Entre cochichos e olhares de cumplicidade mórbida, foi-se chegando a estas conclusões. Afinal de contas, pensavam, deu-se ao infeliz um velório cristão, sendo o finado merecedor ou não, quem sabe? Melhor então deixar o defunto com os seus pensamentos até a manhã seguinte quando seria o enterro.

Logo a igreja ficou vazia… o silêncio engolia até os pensamentos do velho padre que se movia lentamente em direção à porta principal para trancá-la. Pesarosamente já havia fechado as janelas laterais, e vez por outra espiava de esguelha o finado solitário.

Não se atrevera a fechar a tampa do caixão. Devia ter feito isso enquanto as carpideiras estavam lá – pensou alto – agora faltava-lhe coragem para encarar aquele que em vida fora temido e odiado.

Trancou a porta. Quando já se afastava ouviu uma batida leve: toc toc toc…

Quem é? – bradou um pouco assustado

Louvado seja Nosso Senhor Jesus Cristo – falou uma voz de homem lá fora.

Para sempre seja louvado – completou o padre com a contra-senha.

- Que queres à essa hora meu filho?

- Preciso de um pouso, padre. Venho de longe, muitos dias de viagem, e estou muito cansado.

O padre reconheceu então a voz do andarilho, e logo lembrou que era sempre por essa época do ano que esse pobre filho de Deus aparecia por lá. Era tempo das romarias do Galo, aquele Galo esculpido no monte de mesmo nome em Carnaúba dos Dantas, que competia em adoração com a Nossa Senhora da Vitória. Coisas do sincretismo religioso e superstição sertaneja. E embora o velho pároco não concordasse muito com aquilo já desistira a muito tempo de tentar convencer o povo do sertão de que a tal crença no galo não fazia qualquer sentido e de qualquer maneira servia como uma esperança na alma daquele povo tão sofrido. Não valia à pena apagar esse fumego de fé do coração sertanejo, pensava ele.

O padre abriu a porta bem devagar e espiou com uma vela o rosto sofrido do andarilho e falou:

- Olha filho, não temos aqui onde acomodar voce. Mas se não se importar de ficar aqui mesmo dentro da igreja, tudo bem. Desde que bem cedo, antes da primeira missa voce deixe tudo em ordem.

- Assim tá bom, padre – respondeu o romeiro. Vou me aquietando por aqui num cantinho qualquer, e de manhãzinha o Sinhô nem vai notar que tive aqui. Obrigado, padre.

- Tá bom meu filho. Vou ver se arrumo alguma comida pra voce matar a fome, e um pouco d’água.

- Tem mais uma coisa, filho – falou com uma angústia dessas que aperta o peito e a garganta, o velho e bom padre.

- Hoje tem um velório aqui. Todos já foram embora, mas o finado ainda está lá perto do altar. Se voce não for medroso com essas coisas pode se arrumar em um banco desse aí e passar a noite. – disse isso com um misto de pena e desafio. Talvez acreditado que o pobre coitado desistisse e fosse procurar outro lugar de pousio.

O andarilho meteu a cabeça pelo canto da enorme porta entreaberta e espiou lá bem na frente, perto do altar-mor o caixão aveludado com a tampa aberta. Suspirou fundo, como se pesasse as possibilidade, fez a contas com o seu cansaço e imaginou que não tinha muita importância, porque do jeito que estava logo logo estaria apagado de sono. Matutou mais um pouco e disse:

- pode deixar, padre. Nossa Senhora da Vitória me proteja!

Entrou pela porta. Examinou o local. E por precaução preferiu subir para a galeria que se estendia por sobre a porta principal de lado a lado da largura da igreja. Dalí podia ter uma visão geral de toda a nave do templo. Vai que acontece alguma coisa, ali estaria mais protegido, pensou.

O bom padre saiu em direção à sacristia e não demorou muito voltou com um farnel e uma quartinha de água. O romeiro já instalado na galeria desceu os degraus ao encontro do padre. Pegou a comida e a água e sentado ao chão consumiu sofregamente aquela refeição simples que parecia ter saído diretamente da cozinha do Altíssimo.

Muito agradecido ao padre, pediu sua benção e subiu novamente para a galeria escolhendo um dos bancos de madeira onde se acomodar.

Ficou só. O silêncio… ah, o silêncio… não era como o silêncio do sertão a que estava acostumado, não. Era um silêncio diferente… pesado… entremeado de sons de velhos rangidos e chacoalhares indefinidos. Na penumbra das poucas velas que ficaram acessas ao lado do morto as sombras dançavam e figuras disformes apareciam e sumiam como que por encanto.

Sua mente fervilhava, e o sono, fiel companheiro dessas horas, não deu o ar da graça. Ficou ali deitado nos bancos, de cara para cima, só assuntando. Vez por outra o farfalhar do vôo de um morcego brincava com a sua imaginação. O qui qui qui de ratos despreocupados fazia aquele lugar sombrio parecer uma feira de sábado. E o sono… o sono… o sono… foi aos poucos chegando convidado pelo cansaço que tomava conta do seu corpo. Dormiu, finalmente, o pobre romeiro.

Silêncio total… o silêncio foi ficando mais pesado. Tão pesado que o pobre coitado acordou com aquele peso. Não fazia idéias de que hora era aquela ou de quanto tempo havia dormido. Apenas sabia que acordara com um silêncio estranho. Não havia mais ratos ou morcegos. Podia até escutar o crepitar da velas no altar próximo onde estava o defunto.

Um cheiro… sentia um cheiro ocre no ar. Como se enfiasse a cara num cesto de ovos gorados.

- Argh!… Que fedor insuportável!… – praguejou o infeliz. - Será que o defunto apodreceu de vez?… meu Deus, o defunto… tinha até esquecido dele!

Pensando nisso, levantou-se devagar e foi se esgueirando até a balaustrada da galeria onde estava. Espiou cautelosamente em direção ao altar-mor, e na penumbra da luzes das poucas velas que restavam acesas viu o caixão aveludado ainda aberto mostrado um pouco do perfil do morto. O padre não tivera coragem mesmo de fechar a tampa do esquife. E a cena era de meter medo em qualquer cabra macho.

Enquanto tinha sua atenção voltada para o caixão, o pobre romeiro foi sentindo o cheiro de podridão e enxofre cada vez mais forte. E um barulho como de cascos de bode andando sobre um lajedo foi se aproximando por debaixo de onde estava. O pobre coitado foi ficando gelado de medo e suava um suor frio. Não podia ainda ver o que se aproximava, pois vinha por debaixo da galeria do templo andando bem devagar.

Sentiu um resfolegar frenético como o de um garanhão no cio. O fedor cada vez mais insuportável e, de repente, bem ali, exatamente embaixo do ponto onde estava, pode ver aquela figura horrenda, indescritível e gosmenta. Visto assim de cima e naquela penumbra não dava para distinguir bem o que era. Mas podia ver bem algo como labaredas de fogo saindo dos olhos e da boca.

A criatura seguiu adiante, sempre cautelosa. À medida que caminhava pelo vão central do templo em direção ao altar-mor, foi possível ver que se tratava de uma besta como nenhuma outra jamais vista. Tinha as costas musculosas como um touro; os braços pareciam toras de angico; das nádegas saia um rabo grosso que ia se afinando como se fosse um jibóia; e as pernas, cabeludas, eram arqueadas, meio cambetas, e terminavam em patas como cascos de bode.

- Não pode ser!… – pensou o pobre romeiro. – Devo estar sonhando!…

Mas não estava, não! A criatura aproximou-se do caixão… examinou bem o defunto… Virou-se para trás em direção à galeria… deixou escapar faíscas incandescentes de sua boca num sorriso sarcástico como se soubesse que estava sendo observado. E de súbito, num repente tão rápido quanto um raio, lançou a mão sobre a boca aberta do defunto e arrancou-lhe a língua de um só golpe. Deu um brado estarrecedor erguendo os braços com o órgão ensanguentado nas mãos.

A criatura andou a passos pesados em direção à parede lateral do templo e atirou com força a língua ensanguentada que ficou lá pregada. O sangue escorria até ao chão. Molhando a ponta dos dedos naquele sangue, o Coisa-Ruim escreveu na parede:

LÍNGUA QUE MENTE E LAVANTA FALSO, NEM NO INFERNO NÃO ENTRA”

E numa gargalhada estrondosa que se fez ouvir muito ao longe, desapareceu como por encanto ao meio de um estrondo ensurdecedor, deixando no ar o cheiro fétido de enxofre.

demo

O romeiro, já não sabendo se estava vivo ou morto de tão paralisado de medo que estava, soltou um brado que rasgou-lhe por dentro a garganta:

- VALHA-ME NOSSA SENHORA!…

Um alvoroço se formou do nada!… O padre vestindo um camisolão irrompeu ao templo assustado… a vizinhança da igreja chegou correndo para ver o que acontecera… o pobre romeiro, tremendo e aos prantos nada falava.

A cenário falava por si… o morto, de boca escancarada e olhos esbugalhados como se tivesse presenciado o horror dos horrores… sangue para todos os lados … e aquela frase escrita na parede em um vermelho vivo.

Alguns notaram que na passarela central da igreja, indo da porta principal ao altar-mor, havia marcas de pegadas. Parecia pegadas de um bode, só que muito maiores.

No caos que se seguiu, resolveram então por um fim a essa história toda. Na mesma hora, ainda escuro da noite, alguns homens mais corajosos pegaram as alças do caixão e partiram para rumo ignorado. Ninguém mais soube dizer em que lugar foi enterrado o defunto infeliz. E a cidade toda, por medo ou por precaução, não falou mais no assunto.

Depois de muito, muito tempo, só um velho e solitário andarilho que dizem ter bem mais de cem anos, resmunga palavras soltas, enquanto vaga sem rumo e sem juízo por esse sertão de meu Deus. Do pouco que se pode entender parece que ele diz:

- eu vi… era o Próprio, o Coisa-Ruim, o Capeta, o Capirôto, o Dandão, o Tinhoso, o Cramunhão, o Demo…

 

sábado, 15 de maio de 2010

O Nêgo D'Água


Nêgo D'Água, Mãe D'Água, Yara, Rainha das Águas etc, são variações afroameríndias, não obrigatoriamente derivadas, dos mitos eurocaucasianos das sereias e outros seres mitológicos dos mares e rios. A mitologia de diversos povos e culturas é riquíssima na variedade de manifestações folclóricas sobrenaturais envolvendo criaturas ligadas ao meio líquido. Já que somos "ilhas humanas" cercadas de água por todos os lados que impõe limites à nossa presunçosa supremacia sobre todos os seres do planeta, é natural que nossos medos nos assombrem em formas de figuras fantásticas, mesmo quando nosso conhecimento acumulado sobre o mundo natural estenda cada vez mais esses limites. 
A água nos desperta um sentimento atávico do qual não podemos nos libertar: dela dependemos; ela nos limita; ela nos assombra. O mítico se funde ao místico, e surgem devoções como forma de nos fazer transitar nesse elemento, com ele conviver e apaziguar seus "demônios".
Assim é que em todo canto que se ande há uma história mítica para explicar a origem das coisas, e essa mitologia envereda pelo misticismo religioso de um matiz qualquer, a despeito do que digam os fatos históricos sobre tais origens.
Há os que acreditam em tais manifestações sobrenaturais e reivindiquem para si os poderes místicos que permitem intermediar, para o bem ou para o mal, as relações desse mundo sobrenatural com os humanos. Em tal categoria estão os bruxos, magos, pajés, feiticeiras, pais de santo, mães de santo e até padres e pastores evangélicos em alguns casos. Há os que acreditam, e seguem aos seus líderes místico-religiosos em maior ou menor grau. Há os que estão no meio do caminho, e na dúvida, seguem o dito popular: "acendem uma vela pra Deus e outra para o Diabo". E há os céticos, para quem tudo isso não passa de uma construção da psique humana.
E voce? Em que categoria se encaixa?
A Caicó dos anos 40 do século passado ainda carregava no imaginário do seu povo as lendas da sua origem, a despeito da história oficial da sua fundação que dá conta ter surgido das primeiras datas de sesmarias concedidas a dignatários da Colônia, que empreenderam a colonização do sertão "pelas patas de gado", e da construção da Casa do Cuó, fortificação erigida para aquartelar as tropas coloniais empenhadas nos combates da chamada "Guerra dos Bárbaros", travada contra os gentios bravios do sertão  da Nação Tarairiú (Jandui, Ariú, Pega, Canindé, Genipapo, Paiacú, Panati, Caratiú e Corene), ainda no século XVII.
Entre as lendas, consta a de um vaqueiro portugues que em busca de uma rês extraviada deu de cara com um touro mítico que habitava um mofumbal. O touro seria uma encarnação do deus Tarairiú que defendia aquelas plagas. O dito vaqueiro, perseguido pelo touro e sem encontrar a saída daquela quiçaça, ajoelhou-se em prece a sua santa de devoção, a Nossa Senhora de Sant'Anna, prometendo-lhe que se encontrasse livramento construiria no local uma capela em sua homenagem. A partir daí, o touro encantou-se nas águas de um poço ali próximo, e o vaqueiro, conseguindo sua salvação retornou mais tarde para cumprir sua promessa, erigindo no local uma capela dedicada à santa.
Uma variação da mesma lenda, conta que o vaqueiro buscava desesperadamente por água para o seu gado em tempos de uma seca terrível. Fez promessa semelhante à sua santa, caso encontrasse água,  e que essa água nunca acabasse. Tendo encontrado um poço que parecia não secar nunca, cumpriu a promessa e erigiu a capela dedicada a Nossa Senhora de Santana. A quem diga que a capela original dedicada  a Nossa Senhora de Sant'Anna seja a atual Igreja de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos, mas não há consenso entre os historiadores sobre isso.
O poço passou a ser chamado o Poço de Sant'Anna. Ao que parece, tal poço era  ligado por uma furna submersa ao Rio Seridó, razão pela qual nunca secava mesmo nos periódos de seca mais inclementes. E nessa furna habitavam criaturas míticas: uma serpente gigantesca, em que o touro havia se transformado, e outras entidades igualmente mágicas. Mas havia um porém. Diz a lenda que se o poço um dia secasse, ou se numa enchente suas águas chegassem ao altar-mor da Igreja de Nossa Senhora de Sant'Anna, a serpente sairia de sua morada e destruiria a cidade.
Fato é que em 1924 ocorreu uma cheia dessas proporções. E mais tarde, já na década de 30, o poço secou por completo trazendo à mostra sua furna antes submersa. Todo o povo se ajuntou para ver a furna, numa expectativa de medo, curiosidade e devoção. A cidade não foi destruída em nenhuma das ocasiões, nem se viu as tais criaturas. O povo, em seus misticismo, atribuiu a salvação da cidade à intervenção da santa padroeira.
Pois bem!... Em meados de 1940 havia um sujeito boa pinta, metido a boêmia, de boa voz e por isso locutor da rádio local, alfaiate de profissão, conhecido por Zé Madalena. Filho de família pobre da periferia dos arredores do Rio Barra Nova, desde cedo dedicou-se a a aprender o ofício de alfaiate, sem descuidar dos estudos.
Como naqueles tempos a roupa se mandava fazer, o ofício de alfaiate era promissor, ao menos para o patrão  dono da oficina, onde não faltava serviço. Era comum, pelo acúmulo de serviço e prazos de entrega honrados com presteza, que se fizessem serões noite adentro para garantir a demanda.
A cidade, muito quente mesmo à noite em época de verão, deixava o pobre Zé Madalena exaurido. Ainda mais somando-se ao calor do clima o calor do ferro em brasa que usava para arrematar e passar os ternos de linho e casimira inglesa. Por isso, após a labuta dos serões, era costume ir junto com os colegas buscar a refrescância dos mergulhos no Poço de Sant'Anna já tarde da noite, antes de irem para suas casas.
Numa dessas noites, Zé Madalena ficou até bem mais tarde que os outros em seu trabalho. Quando resolveu ir embora, sufocado pelo calor, não pensou duas vezes em ir ao Poço de Sant'Anna se refrescar.
Era noite de lua cheia. Podia-se ver os reflexos da lua tremeluzindo naquelas águas antigas do poço. Zé ainda titubeou um pouco sobre sua intenção de nadar naquelas águas. As lendas lhe tomarem a mente de assalto. Sua religiosidade o impelia a não temer.
Nadou, nadou, nadou. Ficou um bom tempo ali contemplando a beleza do lugar. Tudo estava calmo e sereno. Apenas os sons noturnos do bichos: o piar de uma coruja, o burburinho de roedores no mato ralo em volta, e no mais tudo calmo. A cidade dormia entregue ao deus do cansaço. A luz  de motor já se apagara. Apenas a lua como testemunha, e a silhueta da imponente Matriz de Sant'Anna.
Quando já estava se dando por satisfeito, Zé Madalena ouviu um burburinho nas águas do poço. Saiu de mansinho. Recolheu suas roupas do chão e as pôs debaixo dos braços levantando a vista para sondar a superfície das águas. Tudo calmo!
Começou a vestir a roupa e ouviu de novo o barulho. Agora mais forte. Como se um peixe grande tivesse vindo à superfície e dado uma rabanada. Não viu nada. Apurou a vista e os ouvidos. E do outro lado do poço à sua frente, divisou um vulto que emergia lentamente. Não viu muito, apenas algo como olhos brilhando envoltos numa forma mais escura que o escuro onde estava.
Pensou que talvez fosse alguns de seus colegas que tendo saído mais cedo do serão aguardaram por ele pra lhe pregar uma peça. Chamou-os pelos nomes, e nada. O vulto continuava lá, no mesmo lugar.
Vôte!... isso é coisa do outro mundo - pensou alto.

Ao assim dizer viu o vulto sair da sombra onde estava deslocando-se em sua direção sob a luz do luar. A visão o deixou estarrecido. Parecia humano, mais se deslocava sobre a água de braços abertos aparecendo apenas do tronco para cima. A água que a deslocava chegou em ondas a seus pés e nesse momento Zé Madalena foi invadido pelo medo e a certeza de que aquela criatura ou seja lá o que fosse estava mesmo vindo em sua direção. Sem muito tempo, vestiu-se às pressas e saiu correndo gritando: é o nêgo d'água.
Se Zé Madalena era cético ou não eu não sei. Mas desse dia em diante passou a ser mais cauteloso com as histórias e as lendas que cercavam sua cidade. Mais tarde, muito mais tarde, viria a ter outros encontros escabrosos e sem explicação.
Mas isso é outra história.

sábado, 8 de maio de 2010

A PHANTASMA

Tinha umas histórias das que meu pai contava que me deixava de fato muito assombrado. Entre elas estava a história da Phantasma.
O que eu não imaginava à época, era que essa história em especial era pura invenção do Velho. Fazia parte dos seus repentes. Aqueles momentos em que após tanto falar para a audiência infantil ávida por mais um dose de suspense, ele, já cansado ou com um branco na memória, tirava da cartola um conto inusitado. Foi assim também com a série de histórias do “Duque de Piemont”, a de “Crisálida Aladim”, e outras. Mais isso é assunto pra depois. Só muito mais tarde, já adulto, vim saber dessa tramóia, pois para mim e toda a criançada sentada ao chão em volta daquela cadeira de balanço de onde ele contava as histórias de malassombro, era tudo verdade verdadeira. Afinal que graça teria se tais histórias não fossem de verdade?
Contava ele que lá pelos idos de 1960, em Serra Negra do Norte, município distante uns 40 km de Caicó, um motorista de caminhão e seu ajudante se preparavam para dormir após um longo dia de trabalho.
O caminhão era um daqueles FNM-Alfa Romeo D-9.500. O saudoso “FÊNÊMÊ”. Um caminhão imponente para a época, e estava novinho em folha. Só tinha feito, até então, duas viagens para o Recife. Pertencia a Zé de Ramos, esposo da minha tia materna Terezinha.
Era costume naqueles tempos haver sempre um motorista e um ajudante, geralmente um bom mecânico, que viajavam juntos nas estradas empoeiradas do sertão. E quando paravam para dormir, após rodar o dia todo, um se instalava na boléia, ou se “aboletava”, como se dizia; e o outro armava uma rede nos ganchos laterais da carroceria.
Chegaram a Serra Negra já de noitinha e deixaram para descarregar o caminhão no dia seguinte. Tomaram um bom banho e jantaram ali mesmo na casa do patrão. Como de costume, naquelas noites cálidas, o calor do dia ainda esvaindo-se do calçamento de paralelepípedo, sentaram-se junto com outros trabalhadores nas calçadas em confortáveis cadeiras de macarrão para ouvir e contar “causos”.
Foi ai que alguém contou uma história que ninguém tinha ouvido antes. Era sobre a Phantasma. De fato eles pronunciavam “pantarma”. Um malassombro dos grandes! Que aparecia como um pequenino ponto de luz no horizonte. Tão pequeno que era difícil enxergar no início. Mas que ia crescendo e crescendo à medida que se olhava para ela. Era uma luz espetacular! A pessoa ficava curiosa e quanto mais olhava mais a luz crescia e se aproximava, até chegar bem perto e desabar sobre o pobre coitado.
Muitos caçoaram da história: é um “fogo-fátuo” – diziam. E se riram bastante uns com os outros.
Após outras tantas histórias, e já enfadados do dia aos solavancos do “FÊNÊMÊ”, os dois viajantes resolveram se preparar para dormir. O motorista se aboletou, e o ajudante armou sua rede embaixo da carroceria do caminhão.
Com o esfriar da noite logo pegaram no sono. Se bem que o ajudante, impressionado com a “pantarma”, ficava olhando o fim da rua, como se espreitasse o menor sinal do fenômeno. Estava sugestionado!
Dormiu finalmente. Sono profundo que embala o cansaço do dia. Foi então que pela madrugada com a chegada da cruviana, o ajudante despertou meio sonolento, incomodado com o frio. Aquela visão da rua suavemente iluminada pelas luzes de mercúrio que deixavam sombras entrecortadas no caminho trouxe à sua mente a lembrança da “pantarma”. – Besteira – pensou. – Vai ver era um “relâmpo” que o cabra viu. – pensou alto como se justificasse para si mesmo o medo que sentia.
A rua onde estava deitado sob o caminhão era em declive. De modo que pelo seu ângulo de visão podia enxergar até o final da rua como se este estivesse bem mais próximo do que realmente estava. Também podia enxergar a silhueta do cemitério que se estendia ao longe.
A cruviana começa a incomodar. Embora estivesse bem agasalhado, o vento frio batia embaixo da sua rede e o fazia tremer. Não conseguia mais pegar no sono, como naquelas noites em que o cansaço é tanto que não nos deixa dormir.
Começou a pensar então na sua vida, em como chegara até ali. Mecânico, ajudante de caminhão. Tinha sido um grande avanço para quem tinha saído das brenhas mais isoladas daquele sertão. Sorriu consigo mesmo satisfeito. Amanhã, depois que descarregar as mercadorias, vou poder dormir em casa com minha Etelvina, lá em Caicó – murmurou.
Entre um pensamento e outro, olhou ao longe para o fim da rua, e viu uma luzinha bem pequenininha. Tão pequena que mal dava pra ver. Mas era muito brilhante, de um amarelo intenso.
A luz se movia de um lado a outro da rua, mas não oscilava, não variava em nada.
Que coisa! – exclamou! – Lanterna num é. Se fosse balançava quando a pessoa andasse. Nem lamparina, é muito forte. – matutava ele.
À medida que continuava a olhar para a luz ela ia crescendo e ficando mais intensa e mais bonita. Era linda! Era como se fosse feita de milhares de fogos de artifício de todas as cores. E cada vez mais se aproximava do ajudante que cada vez mais se sentia atraído por ela.
O ajudante, por fim, sentou-se em sua rede, e olhando fixamente na luz que crescia e se aproximava gritou apavorado: Ai meu Deus!... A Pantarma!...
Nesse momento, o motorista que dormia na boléia, sentiu o caminhão tremer com violência. De um pulo levantou-se assustado. Abriu a porta e saltou para fora da boléia.
Só deu tempo de ver o caminhão tombando para o lado, e aquele facho de luz da largura da rua e com mais de dez metros de altura, passar por ele e sumir rapidamente.
Correu para o outro lado da rua a procura do amigo ajudante, e viu o homem gemendo debaixo da carroceria do “FÊNÊMÊ”. Gritando por socorro tentou tirar o companheiro de lá, mas ouviu quando este deu o último suspiro. Estava morto. Esmagado pela carroceria da cintura para baixo.
A rua encheu-se de gente. Foi um alvoroço. E todos perguntavam ao motorista: o que foi? O que foi?
Foi a PANTARMA. – respondeu.
Pois bem, agora imagine uma criança, nos tempos em que não havia televisão e as noites tinham um quê de magia, dormir com uma história dessas.
Lembro que nos agasalhávamos em nossas redes que ficavam coladas umas nas outras, e olhávamos pelas brechas do lençol espreitando qualquer ponto de luz. Se um vagalume passasse alguém gritava: É A PANTARMA! É A PANTARMA!

quinta-feira, 6 de maio de 2010

A luz do outro mundo

Era uma noite como qualquer outra naquela Caicó dos anos 40. Tio Pé-de-Graxa, ou Tio Graxa, mantinha seu costumeiro hábito boêmio. Umas voltas na praça da Matriz de Santana, conversa com amigos, e já mais noite adentro, os cabarés. Aqueles da rua da Cadeia Velha. Mais só umas voltinhas por lá. Frequentava mesmo era pras bandas do "Cai Pedaço". Por lá tinha alguém por quem seu coração batia mais forte.
Era sempre assim. 
Mais pro fim da noite, quando por lá não dormia, retornava para casa, onde sua mãe D. Hermínia, aguardava ansiosa a chegada de seus filhos em casa.
Nessa noite, ficou com sua amada até perto da luz se apagar. A luz à motor, dava sinal de se apagar lá pelas 11 da noite. Depois de muito insistir em passar a noite ali, foi convencido a voltar para casa: uma preocupação à menos para sua mãezinha.
Meteu o pé na estrada, como se diz. Passou pela Cadeia Velha, onde se dizia que aparecia em certas noites um homem sem cabeça na janela do segundo andar que havia sido assassinado ali. Tomou o rumo da Avenida Seridó, e aí a luz deu sinal de apagar.
Vige - pensou, apressando ligeiramente o passo. - tomara que dê tempo de chegar em casa.
Quando ia já perto do centro operário avistou uma cena curiosa: sentadas em tamboretes debaixo de um poste de luz havia umas freiras costurando alguma coisa tipo um lençol. Achou estranho: uma hora dessas, essas freiras costurando no meio do tempo? que coisa esquisita - conversou consigo mesmo em voz alta.
Foi chegando mais perto... então a luz deu o último sinal e logo se apagou. Tudo ficou escuro. Tudo?
Ué! que negócio esquisito é esse?! - exclamou assustado. - A luz não apagou? - indagou mais assustado ainda.
 O que aconteceu era realmente muito esquisito. Certamente "coisa do outro mundo", como contou mais tarde. Porque a luz da cidade inteira de fato se apagou. Menos a daquele poste onde estavam as freiras.
Já de cabelo em pé, Tio Graxa se aproximou daquela cena estranha. E viu que as freiras costuravam uma mortalha. É que naquele tempo ainda se tinha o costume de quando alguém morria se "amortalhar o defunto". Geralmente o finado era vestido com roupas parecidas com as do seu santo de devoção, ou se fosse muito pobre, um simples camisolão branco.
Metido a corajoso ou pra não perder a pose, o Tio Graxa tirando respeitosamente o chapéu, abordou as "irmãs" com um "boa noite" e perguntou: - quem morreu? - Já que numa cidade pequena quase todos se conheciam lhe parecia natural sua curiosidade.
Não houve resposta. Apenas olhares frios e distantes que não olhavam para lugar nenhum! Era como se os olhos daquelas freiras estivessem soltos dentro das órbitas. Não havia expressões em seus rostos. E o lugar de repente pareceu ficar mais frio.
Tio Graxa, olhando a escuridão em volta daquela cena iluminada, sentiu seu coração pular dentro do peito, as pernas tropegarem, a espinha gelar... 
Cruz credo! - gritou apavorado. - Virgem Santa! - largou no chão o chapéu e saiu em desabalada carreira.
Correu até perder o fôlego e, tropeçando aqui e ali na buraqueira do caminho de casa, finalmente avistou a luzinha do candeeiro que D. Hermínia deixava acessa na sala de casa. Respirou fundo e continuou a correr ainda assustado.
Lá dentro, D. Hermínia como sempre fazia, repetiu sua costumeira frase, um misto de alívio e preocupação:
- "Lá vem Graxa. E tá assombrado..."

sábado, 24 de abril de 2010

Irmão das Almas

Foi na época da farinhada, lá na Fazenda Cabrinha de Azevêdo em Carnaúba dos Dantas, há muito tempo atrás, que apareceu um sujeito solitário e trabalhador que era danado! Mostrou-se também um cabra valente, sem medo de nada, mesmo de coisas do outro mundo. Chamava-se Severino.
Era comum durante a farinhada que todos os parentes e empregados disponíveis ajudassem na tarefa. A isso chamava-se ajutório. Isso porque fazer farinha não era a atividade principal da fazenda. O grosso das atividades era o cultivo do algodão mocó e ainda um pouco de criação de gado que vinha desde os tempos remotos da colonização do Seridó, mas que aos poucos vinha sendo recentemente substituída pelo "ouro branco" da caatinga. Esse sim, o algodão mocó, dava todo o lucro da fazenda. O resto, cana, rapadura, melaço, o feijão ligeiro e o milho de sete semanas, e outros produtos da roça eram só para a subsistência.
 Tanto que depois de descascada e limpa, a mandioca era transportada para a Fazenda Antônio de Azevêdo onde havia uma casa de farinha rústica.
O trabalho era duro! Garantir suprimentos para todo o ano era essencial naquela época e naquelas paragens distantes cuja ligação com o mundo exterior dependia quase que exclusivamente de tropeiros. Assim toda a ajuda era bem-vinda. E a chegada daquele forasteiro bem disposto ao trabalho pareceu uma dádiva dos céus.
O dia começava cedo, antes mesmo do amanhecer. Lá pelas nove horas parava-se para o almoço. Esse geralmente era composto de feijoada, farinha, rapadura, frutas e café. Retomava-se em seguida o trabalho que só era interrompido por volta da duas da tarde para o jantar. Já de noitinha havia a ceia, onde era servida poções generosas de coalhada.
Naqueles tempos era comum a figura do contador de histórias. Pessoa contratada para animar os trabalhadores reunidos na árdua tarefa de lavar e descascar a grande quantidade de mandioca colhida para fazer a farinha. Chamava-se Zé Romão. As histórias eram de todo tipo, desde que seu conteúdo respeitasse a audiência familiar. Mas das que eram mais apreciadas estavam as histórias de malassombro, especialmente quando contadas à noitinha durante a ceia e depois dela, pois era comum que muitos trabalhadores continuassem por alí mascando seu fumo e pitando, recostados pelos cantos, enquanto descansavam da comilança da ceia.
Numa dessas noites, quando a friagem do sertão começava a substituir os vapores sufocantes do calor do dia, Zé Romão começou a falar de um certo funeral misterioso que acontecia de quando vez lá pelos baixios da várzea do Riacho Carnaúba. Contava ele que nas noites de lua nova, lá no meio dos carnaubais ainda comuns naquela época, aparecia umas pessoas carregando nos ombros um caixão. Levavam tochas acesas para alumiar o caminho, que se podiam ver do lugar onde estavam agora.
No meio da noite ouvia-se um grito alto e longo, soando como se estivesse bem longe, e carregado de um eco sinistro: CHEGA IRMÃO DAS ALMAS!
 Passava-se um tempo e a voz continuava: CHEGA IRMÃO DAS ALMAS!... CHEGA IRMÃO DAS ALMAS!... E assim continuava noite adentro até que aquele cortejo fúnebre sumia entre os carnaubais. Assim como aparecia ia embora. Ninguém sabia dizer nada à respeito. Uns poucos trabalhadores que se aventuraram a ir lá saber alguma coisa jamais retornaram para contar a história. Era um mistério que se repetia de tempos em tempos.
Severino, valente que era, terminou de ouvir aquela história com toda a atenção e ficou encafifado! Grunhiu então com seu cigarro de palha preso aos dentes: - se isso acontecer enquanto eu tiver por aqui vou lá ver o quê é. Zé Romão olhou pra Severino com um ar de zombaria provocativa e disse: - Home, tu num brinca com essas coisa... tu num sabe nem se é desse mundo...
- Num tenho medo de nada, sô - respondeu Severino.
- E os home que foro lá e num voltaro? - inquiriu Zé Romão.
- Vai vê se cagaro de medo e ficaro cum vergonha de voltar... - falou sorrindo Severino, o que provocou uma gargalhada geral de todos.
- É... cê que sabe... eu é que num quero saber dessas coisa de alma do outro mundo... - retrucou Zé Romão. - Num é bom mangar dessas coisa, não... - completou.
Depois disso fez-se silêncio, e aos poucos todos se retiraram para dormir.
Passou-se o tempo...
Certo dia, quando todos se preparavam para a ceia e já se fazia escuro, alguem chamou a atenção de Severino apontando na direção dos carnaubais. 
- Olhe, veja ali... - apontou.
- Num acredito... Vige Nossa Senhora de Santana! Então é verdade! - exclamou Severino em voz alta chamando a atenção de todos.
As pessoas saíram todas para fora e olharam na direção da várzea do Carnaúba. Lá estava: aquele cortejo fúnebre seguindo entre os carnaubais. Tochas acessas, e nos ombros de quatro homens um esquife. Dava pra ver direitinho... À frente do cortejo um homem gritava com uma voz que parecia sair de uma gruta: CHEGA IRMÃO DAS ALMAS!... CHEGA IRMÃO DAS ALMAS!...CHEGA IRMÃO DAS ALMAS!... CHEGA IRMÃO DAS ALMAS!...
E agora? Que fazer? Ficaram todos atônitos, como se tomados de uma paralisia que gelava do cucuruto até o dedão do pé.
E a voz continuava enquanto o cortejo seguia devagar: CHEGA IRMÃO DAS ALMAS!... CHEGA IRMÃO DAS ALMAS!...CHEGA IRMÃO DAS ALMAS!... CHEGA IRMÃO DAS ALMAS!...
Foi então que algum espírito de porco falou com certo desdém desafiador: - E aí, Severino. Tu num é cabra macho que não tem medo de nada? Vai lá...
 A voz continuava: CHEGA IRMÃO DAS ALMAS!... CHEGA IRMÃO DAS ALMAS!...CHEGA IRMÃO DAS ALMAS!... CHEGA IRMÃO DAS ALMAS!...
Aquilo parecia entrar direto no juízo! Severino sentiu um arrepio, e ao mesmo tempo um desejo irresistível de ir ao encontro daquele funeral. Não sabia explicar, mas era como se aquele chamado do outro mundo fosse para ele. CHEGA IRMÃO DAS ALMAS!... CHEGA IRMÃO DAS ALMAS!...CHEGA IRMÃO DAS ALMAS!... CHEGA IRMÃO DAS ALMAS!...
Vou lá - disse o forasteiro. - Tu é doido home?! Sabe lá que coisa esquisita é aquela?! - exclamou alguém.
 Eu vou... Nossa Senhora de Santana me acompanhe! - respondeu ele.
Sem se importar com os avisos, Severino empertigou-se, ajeitou o facão na cintura, enrolou um cigarro de palha com a maestria de quem faz isso várias vezes ao dia, se benzeu e partiu na direção do baixio sem olhar para trás.
As pessoas acompanharam Severino com o olhar. Viram quando ele atravessou o vau do Carnaúba e adentrou os carnaubais. Viram ainda quando se aproximou do cortejo fúnebre. E aí, tudo sumiu! As tochas se apagaram... a voz parou de gritar... fez-se um silêncio aterrador. Severino nunca mais foi visto por aquelas bandas.
Alguns homens ainda foram lá no outro dia pela manhã. Mas nem sinal de Severino. Nada...
Mandaram avisar o delegado de polícia em Caicó contando o ocorrido. O delegado chegou a mandar um pequeno destacamento para vasculhar o local. Mas nada. Severino sumiu para sempre. Sem deixar rastro.
Durante muito tempo Zé Romão continuou contando essa história por aquelas bandas. Agora com a autoridade de quem tinha presenciado o fato.
Passaram-se os anos. Pelo menos uns dez anos. Certo dia chegou à Fazenda Cabrinha de Azevêdo um tropeiro vindo do Recife. Fazia sempre aquele chão. De Recife descendo pra Goiana ainda em Pernambuco, adentrando então o sertão da Paraiba até alcançar a região atualmente chamada Baixa da Nega, onde nasce o Rio Acauã, seguindo daí o seu curso natural, passando por onde recebe os afluentes  Totoró, Mulungu e  por fim o Carnaúba, já na região do Seridó.
Chegando na fazenda, numa noite quando ouvia o Zé Romão, já velho e alquebrado contar a velha história de Severino, o Irmão das Almas, disse para espanto de todos: - Ah! O Severino? Encontrei com ele em Recife faz dois anos. Tá rico que só a molesta!
Todos os presentes ficaram abismados!
Como assim? - Retrucou o Zé Romão com a voz cansada, mas eufórica.
- Tá lá em Recife. Rico pra daná! Tem uma loja de aviamentos lá na Rua das Calçadas- confirmou o tropeiro.
- Ele me disse que quando seguiu o cortejo fúnebre, chegou junto aos homens que carregavam o caixão, e perguntou de quem era o enterro. Ninguém respondeu nada. Apenas olharam pra ele com um olhar distante como se não vissem nada. - falou.
- E aí? - perguntou alguém.
- Ele achou aquela gente estranha... esquisita... Pareciam não ser de carne e osso. - respondeu o tropeiro.
- Eita danado! Que apuro! - exclamou o Zé Romão. - Continua, tá me deixando nervoso. - pediu.
Apoi!... Entonces ele disse que teve vontade de correr, mas em vez disso criou uma corage que não sabe de onde veio, se aproximou do esquife, e pediu para um dos homens que carregavam o caixão pra ele levar um pouco também. - continuou o tropeiro. - Entonces o home cedeu o lugar pra ele, e ele continuou carregando o caixão um tempão. Ninguém falava nada. Foi aí que chegaram debaixo de uma imbaúba e o cortejo parou. Os home cavaram uma cova. Levou um tempão, tudo em silêncio, sem palavra... Enterraram o defunto... e aí aconteceu uma coisa que deixou ele gelado. - contou o tropeiro, dando uma pausa que pareceu uma eternidade.
- Fala logo home, desembucha - atalhou Zé Romão com ansiedade.
- Calma, agora que é o bom - retrucou o tropeiro com um riso maroto no canto da boca, continuando em seguida:
- Severino viu o home que vinha antes na frente do cortejo se virar pra ele e dizer com uma fala esquisita: "como tu não tiveste medo e mostraste ser um varão piedoso e Irmão das Almas, cá está tua recompensa. Cavas onde está enterrado o finado e acharás uma botija com muitas moedas d'ouro. Peço-te, todavia, uma cousa a mais. Que mandes rezar uma missa na Matriz de Santana em Caicó, em favor dest'alma que vos fala. Mas não revelais meu nome a mais nenhuma outra pessoa, a não ser o vigário de Santana.".
Depois disso, conta Severino que tudo sumiu como por encanto. - continuou o tropeiro. - Ficou tudo escuro de meter medo. Então ele tirou do seu imborná uma pederneira. Juntou um pouco de folhas secas e fez uma fogueira. Pegou seu facão da cintura e cavou... cavou... cavou... até bater numa superfície dura. Terminou de desenterrar a botija com as mãos e quase caiu de costas quando viu o tanto de moedas de ouro. Arrumou tudo direitinho fazendo um jirau com pedaços de pau que cortou para poder arrastar aquela botija enorme. Andou sem descansar por umas duas horas no rumo de Caicó. Foi então que parou pra descansar debaixo de um oitizeiro. Quando o dia amanheceu, continuou a viagem para Caicó. Quando chegou lá, foi direto para a Matriz de Santana e encomendou uma missa especial ao vigário. Pagou tudo, se hospedou num hotel e na hora da missa veio assistir. Depois foi-se embora de vez no rumo do Recife. É isso - concluiu o tropeiro.
Ouvindo aquela história fantástica todos ficaram assombrados e ao mesmo tempo espantados com a coragem e o destino do Severino. Cada um queria dizer uma coisa. Falavam ao mesmo tempo.
No meio do burburinho que se formou ouviu-se de rrepente uma voz lânguida e fantasmagórica que cortava os ares: CHEGA IRMÃO DAS ALMAS... CHEGA IRMÃO DAS ALMAS... CHEGA IRMÃO DAS ALMAS...
Correria... alvoroço... com os cabelos em pé todos olhavam no rumo do Riacho Carnaúba. Lá estava... aquele cortejo fúnebre guiado por um homem ou seja lá o que fosse gritando aquela frase sepulcral: CHEGA IRMÃO DAS ALMAS... CHEGA IRMÃO DAS ALMAS... CHEGA IRMÃO DAS ALMAS...
Segundo se conta, não ficou ninguém. Foi uma correria geral... Um Deus nos acuda... Diz-se que tem gente correndo até hoje fugindo desse malassombro.

quarta-feira, 21 de abril de 2010

Hi...hiiiiiiii... vai pro inferno...

São Luís do Maranhão. Final da década de 60. Naquele tempo a cidade de São Luís já deixara de ser há muito tempo a "Atenas Brasileira", e se transformara em "apenas brasileira". Uma grande ilha (Upaon-Açu) perdida na geografia continental do Brasil, já sem a importância de outrora. O "fim do mundo". O exílio missionário de nossa família. Uma nova fronteira.
Naquela época morávamos no Conjunto Yolanda Costa e Silva, no bairro Ivar Saldanha. Fomos dos primeiros moradores daquele novo conjunto de casas populares. Ao contrário das de hoje, eram casas amplas e com bom terreno. A nossa casa tinha três quartos, sala, cozinha e banheiro. Os três quartos ficavam todos alinhados à direita de quem entrava e davam para um largo corredor lateral, um oitão como se diz. O outro lado da casa era germinada com outra. À frente, um bom e espaçoso jardim sempre bem cuidado pela mamãe, e uma garagem. Não havia muros altos. Quê necessidade haveria de enfear a frente da sua casa como se fosse uma fortaleza? Não precisava. Aos fundos, como a declividade do terreno era muito grande, papai construiu uma laje na largura da casa, e assim tivemos um novo grande espaço que servia de cozinha, copa, e no lugar de nós, os meninos, dormirmos à noite em nossas redes. Abaixo dessa laje, ganhamos dois grandes porões. Ah! que maravilha! Era nosso espaço... lá brincávamos de tudo: o campeonato de futebol de botões; carrinhos de madeira e lata que meus irmãos Zezinho e Tod confeccionavam com maestria tal que dava inveja aos meninos ricos com seus carrinhos de loja automáticos.
Bons tempos aqueles! O dia inteiro pra brincar e estudar; uma ou outra pequena tarefa pra ajudar mamãe, mas na verdade dávamos mais trabalho que ajudávamos; e à noite... ah, a noite! A hora mágica! Era a hora de sentar no chão do terraço, todas as luzes da casa apagadas, e ouvir nosso pai, do alto de sua cadeira de balanço travestida de um trono divino de onde emanavam as deliciosas histórias de malassombro.
Não tínhamos televisão. Alíás que eu me lembre, só tinha tv na casa do nosso amiguinho Ademar, hoje um importante empresário do reagge no Maranhão, nosso querido "superpateta", como o chamávamos então. Por conta disso, a audiência lá em casa era grande. A criançada da vizinhança acorria ansiosa para ouvir as histórias. Eram tantas. Parecia existir um repertório sem fim:  "Sinhá Véia",  " O Duque de Piemont", "Irmão das Almas", "O Gigante de Caicó", "A Phantasma", "O Nêgo D´Água do Poço de Santana", "Crisálida Aladim", "A Cruviana", e tantas outras, incluindo uma série chamada "As Histórias do Véi Silivero", um contador de histórias que existiu em Caicó nos tempos em que meu pai era criança.
Como era bom dormir assombrando!... melhor que o Lexotan ou o Prozac de hoje!
Às vezes papai nos pregava peças. Não sei se para dar um intervalo e descansar a voz, ou se para aumentar o clima de suspense! Porque mesmo nesses intervalos ele não deixava a peteca cair. Não se podia dispersar, o clima tinha que ser mantido.
Lembramos em família esses momentos deliciosos de convívio... hoje damos boas risadas quando relembramos esse particular de nossa infância.
Há um episódio em especial que muito nos delicia, que passo a narrar a seguir.
Tod, nosso irmão do meio, sempre foi o mais afoito e destemido de todos. Aprontava muito... se achava a última espiga do milharal. E não por acaso, vez por outra, nós nos juntávamos para aprontar-lhe alguma.
Certa noite, papai interrompeu a história no auge do suspense: 
Tod, vá buscar água bem fresquinha lá no filtro pra mim que estou com muita sede - pediu ele. Não tínhamos geladeira.
Eu não papai - respondeu. - Tá com medo cabra? Cê é tão corajoso - inquiriu o Velho.
Tá bom eu vou - levantou-se resmungando e tomando o caminho do oitão...
Por aí não, cabra. Quero ver voce ir aqui por dentro de casa - Disse papai. A casa estava completamente às escuras, seria um teste de coragem ir lá nos fundos da cozinha buscar água.
Tod foi então, e deu pra ver que ele ia cauteloso, mas barulhento como se assim pudesse espantar os fantasmas de sua mente, certamente todo arrepiado. Demorou um pouco, todos em silêncio. Deu até pra ouvir o barulho da água caindo no copo. De repente ouvímos um grito horrível: AAAAAAAAAAAIIIIIIIIIIIIIIIIII...
E em carreira estabanada chega ele com o copo vazio, pois derramara toda a água no caminho. Sofregando, trêmulo, Tod falou gagarejando a papai que estava sentado impávido em sua cadeira de balanço:
Pap...pap...pai... ti...tinha um... uma a... aa... aaaalmaa... atrá....s do... do fi...fifi...iltro. Ela me... me...me di...sse...sse... "hi...hii...hiiiiiiiiiiiiiii... vai pro in...fe...erno!"
Quá...Quá...Quá...Quá...Quá...Quá...Quá...Quá...! Risada geral... A galera não perdoa!...
Papai, sem Tod perceber, correra pelo oitão e se escondera-se atrás do filtro. Se fingiu de alma  cobrindo-se com um lençol branco que não sei se ele já tinha deixado preparado, e correu de volta pra sua cadeira.
Tod, depois de um tempo, entendeu o que tinha acontecido... e se retirou às turras. Logo ele fora cair numa dessas! Quá...Quá...Quá...Quá...!
Assim era nossa infância... feliz e inocente... bons tempos aqueles!

terça-feira, 20 de abril de 2010

O (lobis)homem da mão no saco

A família do meu pai morava na periferia de Caicó, pras bandas da Rua Olegário Mariano, margeando o Rio Barra Nova. Família grande. Tendo como Patriarca o Seu Manoel Januário dos Santos, mais conhecido como Manoelzinho de Madalena, numa alusão típica com a qual os nordestinos alcunham as pessoas referenciando suas origens matriarcais. Como matriarca a D. Hermínia.
Dos muitos filhos, um se sobressaía por suas peripécias, digamos, nada convencionais. Era chegado a visagens. Gostasse ou não, parece que tinha uma predileção por ver fantasmas, coisas do outro mundo. Qualidade (?) essa que herdou dos pais e ao que parece se estendeu a boa parte da família. Era o Tio Pé-de-Graxa. Ou simplesmente Graxa.
Dentre as tantas histórias do folclore macabro sertanejo não poderia faltar a do lobisomem. Claro, com suas adaptações e tempero regional, não era necessariamente um homem transformado em lôbo. Podia ser qualquer bicho sem explicação. Então, se alguém tinha que ver um lobisomem tinha que ser ele: o Tio Graxa.
Essa história se passa nos tempos em que Caicó dispunha de energia elétrica apenas num período do dia, e como ainda hoje acontece em muitas cidades interioranas, a luz, gerada a motor se apagava por volta das 11 horas da noite. Piscava três vezes como sinal de que logo apagaria.
Quem tinha juízo, voltava logo pra casa na primeira piscadela, pois se sabe que as almas do outro mundo têm predileção pela escuridão da noite. Certo ou não, Gilberto Freire já dizia em seu livro "As assombrações do Recife Velho" acerca dessa predileção. De que com  o advento da "luz elétrica" parece que as assombrações sumiram do cotidiano das cidades. Coisa pra se estudar...
Pois bem. Na vizinhança da casa dos "Madalena", como era conhecida a família do meu pai, morava um sujeito esquisito. De fala mansa, poucas palavras, ninguém sabe bem de onde vinha, meia-idade pra mais, solitário, sem família conhecida. Bom sujeito, no entanto. Achegava-se vez por outra nas calçadas da vizinhança, e partilhava do contar de histórias tão típicos da boquinha da noite naqueles tempos onde não havia televisão, e rádio era coisa de rico. Histórias do dia-a-dia, da vida simples das pessoas, e, especialmente, histórias de malassombros. 
Mas o homem tinha uma coisa esquisita: sua mão direita estava sempre dentro de um saco. Um saquinho de algodão costurado como se fosse uma luva, mas sem os dedos, só o saco.
Numa dessas noites, noite de lua cheia, não por acaso as histórias falavam de lobisomens. E o homem da mão no saco ouvia atentamente as histórias contadas sem dar uma palavra, apenas quietinho em seu canto, com um olhar perdido como se viajasse por uma dimensão da sua alma que não podia vir à luz.
Passadas essas primeiras horas do convívio comunitário, Graxa, como bom boêmio que era, não podia se furtar de suas aventuras noturnas. Todo arrumado. Terno de casimira branco, gravata vermelha e sapato bico-de-chocolate, empertigou-se e disse: Mãe, vou dar uma volta por aí - disse aquilo como se fosse algo novo, como se não fizesse isso quase toda noite. Dona Hermínia olhou para o filho inquieto e disse: vê se  volta antes da luz apagar, filho. Cuidado com o lobisomem, porque hoje é lua cheia.
Nunca vamos saber se aquela última frase era uma preocupação real ou só força de expressão, mas aquele povo sertanejo costumava dar peso às suas palavras. Fato é, que assim que Graxa se retirou o homem da mão no saco também saiu. Inventou uma desculpa qualquer e foi-se embora no rumo da sua casa.
Dona Hermínia não gostou do que viu, ou do que sentiu, sei lá. Mas algo lhe dizia que havia alguma coisa, algum mistério envolvendo aquele homem com a mão no saco. Engraçado que ninguém jamais perguntara a ele a respeito daquilo. Por receio ou por respeito isso era lá assunto dele, e ninguém dava maior importância, pelo menos aparentemente, pois havia quem dissesse à boca pequena que aquilo era pra esconder suas unhas gigantescas de lobisomem. Fofocas de comadres!
Graxa se dirigiu como de costume para a Praça da Liberdade. Passear com alguma morena, cortejar outras, jogar conversa fora com os amigos de boemia, tal e tal. Lá perto da hora de as luzes da cidade se apagarem fez o de costume: dirigiu-se ao cabaré de Raimunda Jararaca, que depois veio a ser suas esposa, mas essa é outra história.
Logo ao chegar no cabaré, a luz deu sinal de apagar. pisc... pisc...pisc. Apagou... A noitada continuou à luz de candeeiros....
Lá pela tantas, não se sabe bem que horas, arrumou-se e tomou o caminho de casa. Escuro de meter mêdo, como se dizia. E como sempre nessas horas batia um arrependimento e aquela voz consigo mesmo que dizia: "nunca mais vou fazer isso..." Era sempre assim... pois tinha que atravessar quase toda a cidade no escuro e alguns lugares ou quase todos eram tidos como assombrados, especialmente pra quem tinha essa "vocação" para o sobrenatural. Caminhos mágicos, como se interligados a outra dimensão: o beco do finado Mané Grilo; o beco de Yôyo Aladim, ou beco do esfola bode; o cemitério velho, onde hoje em dia está a Caixa Econômica, o Banco do Brasil, e tantas outras construções novas da Caicó moderna que se alicerçou em fundamentos antigos e insuspeitos; o campo de futebol, que hoje também não existe mais... Tudo isso em completa escuridão. Apenas a lua cheia como um ciclope a observar os incautos transeuntes daquele mundo particular em que se tornava a noite urbana da velha cidade.
Lá ia ele. O Tio Pé-de-Graxa. Cada rua um arrepio. Cada viela uma lembrança macabra. O cemitério... Até chegar ao campo de futebol. A última fronteira que lhe separava da sanidade... da casa de Dona Hermínia. Depois do cemitério, uma corridinha, o mercado público, e estaria em casa, são e salvo.
Mas era um campo de futebol! Grande... largo... quase infinito. Tomou fôlego e seguiu... passos largos, apressados, mas cheio de pose, afinal era o Graxa! Cabra destemido e namorador!
Seguiu sua solidão tendo por companhia sua própria sombra projetada pela lua. A lua estava numa posição em que sua sombra se  estendia longamente se misturando a outras sombras que ele tentava adivinhar o que seria: uma jumenta deitada ao longe... um cão vadio... uma vaca pastando tardiamente... e... o quê é aquilo? - perguntou para si mesmo. - Sei não... parece uma bola... mas é grande...  está vindo em minha direção? está sim!... meu Deus... que coisa esquisita!... - conversava consigo mesmo em voz alta e trêmula.
Aquela coisa, seja lá o que fosse, vinha em sua direção. Seguindo uma diagonal como que para atalhar-lhe o caminho. Ia chegando, ficando maior. Estranho! - pensou ele. - Parece uma bola, mas se mexe como se estivesse viva!
Danou-se a correr... jogador de futebol acostumado àquele campo correu como se fugisse de um marcador.. mas quê... não deu tempo... a coisa chegou perto e se desdobrou como se tivesse pernas. Ele sentiu como uma chicotada em sua perna esquerda. Viu sua calça rasgada e pode sentir o calor do sangue a escorrer pela coxa abaixo. Correu mais ainda tentando escapar. Deu pra ver que a criatura, seja lá o que fosse, desse mundo ou de outro, recolhia-se como uma bola e depois se distendia em tentáculos que pareciam pernas dentadas. Não era hora de estudar o fenômeno, mas de correr. E assim fez, em desabalada carreira em direção de casa.
Vovó Hermínia não dormia direito enquanto todos os seus filhos não tivessem chegado em casa. A porta da casa era do tipo meia-porta. A parte de baixo passada ferrolho e a metade de cima apenas encostada pra que quem chegasse tarde entrasse com facilidade sem ter que acordar ninguém.
Mas Dona Hermínia ouviu a carreira de alguém chegando, e disse como muitas vezes disse na vida: É Graxa! E vem assombrado!... Mal acabou de falar... vrupt! viu aquele marmanjo se atirar feito um saco de batatas pela parte de cima da porta e gritar: Mamãe vi um lobisomem! Ele me atacou! - falou com a voz carregada mostrando a calça rasgada e o sangue na perna. - Vige Nossa Senhora! - Bradou Dona Hermínia correndo para trancar a parte de cima da porta.
Todos acordaram... foi um alvoroço... até tudo se acalmar o dia já estava raiando.
Para a surpresa de todos, daquele dia em diante ninguém nunca mais viu o homem da mão no saco. Assim como apareceu na cidade foi embora. E assim surgiu a história do lobisomem de Caicó.

terça-feira, 6 de abril de 2010

Minha bembena

Lá pelos idos de 1930 havia um tropeiro conhecido por Manoel. Era o Manoel Tropeiro. Gente boa, de natureza tosca e empedernida e ao mesmo tempo singela, tipo próprio daquelas bandas do Seridó, onde o sertão impõe limites quase sobre-humanos a quem se aventura por suas brenhas e furnas.

Naquele tempo, o tropeiro era a salvaguarda de muitos comerciantes das cidades sertanejas, e também das famílias que viviam isoladas nos sítios, fazendas e engenhos da região. 
Nos anos de seca, quando a vida se tornava ainda mais difícil, Manoel Tropeiro era um daqueles bravos sertanejos que passava meses embrenhado nas trilhas de burro em busca de víveres que pudessem suprir os vilarejos e as cidades: charque, feijão macassa, farinha, rapadura, tecidos e outros aviamentos. Desde o Vale do Assú, onde podia obter com mais facilidade os produtos de seu comércio, até as cidades e vilas do Seridó: Caicó, Cerro Corá, Acarí, Carnaúba dos Dantas, Jardim do Seridó, Parelhas, etc. 
Toda a região era percorrida por ele meses à fio, em sua solidão acompanhada apenas pela sua tropa de burros bem aparelhados e supridos. Podia ouvir-se ao longe o tilintar dos sininhos que adornavam sua burra Ambrosina, a matrona da tropa. Sua chegada nessas paragens distantes era sempre aguardada com uma ânsia que se traduzia nos olhares lânguidos, de quem pouco tinha para o exercício do escambo que lhes permitissem saciar a fome, mas que se alimentavam da curiosidade com dócil subserviência de assistir aos comerciantes locais e donos de engenho abocanhar boa parte das mercadorias trazidas nos lombos dos burros, restando-lhes esperar que de resto ainda lhes sobrassem um bem que fosse acessível ao menos para enganar suas necessidades básicas de sobrevivência.
Mas o Manoel Tropeiro era desses que sempre se condoia dos menos abastados. E sempre dava um jeito de suprir uns e outros, fazendo amigos por onde passasse. Isso lhe garantia algumas vantagens: salvo-conduto em situações de conflito; poder arranchar em qualquer lugar; e aqui e ali uma companhia feminina que não fosse sua burra Ambrosina.
Alías, esse era o seu fraco: mulheres! O que era de se esperar de quem tinha uma vida solitária e nômade.
Foi numa dessas viagens, se conta, que lá pras bandas de Timbaúba dos Batistas, naquela época ainda parte do município de Caicó, que Manoel Tropeiro arranchou certa noite perto de um pé de oiticica.
Era uma noite sem lua, mas o céu estrelado conferia uma certa luminosidade que refletia nos granitos dos lajedos, como se as estrelas se multiplicassem no chão, conferindo uma atmosfera de miragens e sombras sobrepostas. Podia-se facilmente vislumbrar visagens que assombrariam os de nervos mais fracos.
Como era seu costume, arranchava cedinho da noite para partir ainda na friagem da madrugada, evitando assim o desgaste dele e dos animais sob o sol inclemente do sertão. Parava também nas horas mais quentes do dia, sempre procurando a sombra doce de um oitizeiro.
Do ponto onde estava arranchado, ao pé da fogueira de pedras e braseiro, podia ver o contorno serpenteante do riacho Tapuio, afluente do Piranhas, em sua agonia de sobreviver naquela aridez sertaneja. 

Seus pensamentos divagavam entre a fome e o cansaço, e a obrigação de cuidar de seus fiéis animais de carga. Entre um pensamento e outro se imaginava embalando-se ao som de uma sanfona e zabumba rodopiando uma linda e "perfumosa" morena em seus braços. Ah! - pensava o solitário tropeiro - daria tudo pra ter uma morena agora comigo!
Mal acabou de fugir-lhe esse pensamento, ouviu um som familiar e bem-vindo. Um som que viajava a galope, amplificado pela vastidão daquele vale: o resfolegar de uma sanfona, o repicar de um triângulo, e a inconfundível marcação da zabumba. Um forró? - pensou...- deve estar longe! - ele sabia quantas léguas distantes poderia viajar aquele som.
Terminou de comer sua carne assada na brasa... tomou um caneco de café bem forte... pegou seu alforje e tirou de dentro um pedaço de fumo em rolo... começou a picar o fumo pra fazer um cigarro sentado em sua rede armada entre os galhos do oitizeiro.
O som convidativo continuava a chegar aos seus ouvidos... quase podia vê-lo serpenteando como o riacho à sua frente. Foi nessa hora que pressentiu aquele vulto se abaixando para entrar sob as frondes da oiticica. Que susto! Não podia acreditar! Ali, na sua frente... num vestido branco cheio de brocados e rendas típicas da região... aquela morena... olhos rasgados... cabelos longos e lisos descendo pelas costas até o tronco... uma mistura típica de raças índias e negras que se fundiram na história do lugar...
Boas noite, moço! Posso me achegar? - exclamou.
Ãh! cacaclaro - gaguejou meio sem jeito. - Se achegue aqui perto do fogo - completou.
Ainda titubeando do susto, levantou-se a arrastou um pedra achatada para a moça assentar-se. Sem dizer uma palavra serviu-lhe uma caneca de café, sentou-se em sua rede, e contemplou aquela belezura de mulher à sua frente banhada pelo bruxulear das pequenas labaredas que chispavam da fogueira de pedras.
A moça tá sozinha nessas parage? - disse se esforçando pra se mostrar calmo, agitado que estava em seu íntimo.
- respondeu ela. - tô indo pra festa lá pras bandas da fazenda Timbaúba. - completou com uma voz macia e insinuante. - O moço não quer ir comigo? - perguntou com aquela voz que penetra nos sentidos mais primitivos da alma dos homens, quase uma convocação.
Manoel Tropeiro sentiu o impacto daquele chamamento atávico. Não podia resistir, embora estivesse ensimesmado da presença daquela moça tão bonita andando sozinha por aquelas bandas. Ficou matutando uns segundos que pareceram uma eternidade... Então falou: a môça tão bonita assim não tem companhia pra ir a uma festa?
É uma festa de casamento. Vai ser muito bom! E o lugar aqui é pequeno, uma casa aqui outra ali... e os moço essa época tão tudo buscando trabalho por aí afora! - respondeu com um certo ar de tristeza, como se uma lembrança ruim assolasse seu pensamento.
Manoel Tropeiro notou seu olhar cabisbaixo e levantando-se da rede como para disfarçar que tivesse percebido sua tristeza repentina, esticou os braços e pernas e caminhou até fora da copa do oitizeiro.
A moça seguiu-lhe os passos. Manoel Tropeiro esticou a vista na direção do som e pode ver bem distante um vulto ou outro de pessoas caminhando na trilha do riacho. Ouviu murmúrios, às vezes gargalhadas viajando pelo vento em sua direção, e atinou que devia ser isso mesmo: havia uma festa em algum lugar, e aquela moça bonita e solitária estava a caminho de lá! Sorte sua, pensou.
Nesse instante, a moça que estava logo atrás dele, tocou-lhe os braços suavemente e segurou-lhe a mão sem dizer nada. Ele sentiu um arrepio gélido a percorre-lhe a espinha, e o farfalhar de um hálito estranho a roçar-lhe a nuca, como se fosse o prenúncio da cruviana.
Não teve tempo de refletir sobre isso. A môça passando à sua frente, abraçou-lhe fortemente e o beijou com sofreguidão. Pobre Manoel! Baixou completamente a guarda e se deixou levar pelo ímpeto de aplacar sua solidão entregando-se loucamente àquele frenesi Nem ao menos sabia o nome da moça, mas que importava? Entre um beijo e outro murmura ao seu ouvido: "minha bembena... minha bembena"
Amaram-se ali mesmo, sob o tilintar das estrelas. Só uma coisa era estranha para ele: sentia muito frio, mesmo com toda aquela atividade frenética. Mas ele imaginou que era apenas o frio da noite que os envolvia naquele lajedo aonde haviam deitado.

Após um tempo, sentaram-se os dois ainda abraçados e a moça murmurava com uma voz meio espremida nos ouvidos dele: "minha bembena... minha bembena" .Era como se  caçoasse amorosamente dele, criando uma intimidade típica dos amantes que se alcunham mutuamente. Ficaram assim por um tempo, sentados e abraçados, murmurando um ao outro: "minha bembena... minha bembena". Daí em diante, só era assim que se tratavam. Um nunca soube o nome do outro. Que importava se eram um para o outro apenas "minha bembena", ou "meu benzinho", no seu dialeto de amor.
Finalmente se puseram de pé. Ele apressou-se em selar sua mula mais veloz e partiu com ela na direção do som festivo que lhe invadia os sentidos. Não era muito longe dali, apenas uma légua, segundo ela lhe dissera. 
De fato, em meia hora de cavalgada chegaram ao lugar. Estava tudo iluminado por muitos candeeiros a querosene. Fogueiras no terreiro. Gente dançando. Outros cuidando da festa: servindo bebidas, assando bodes e carneiros. A casa da fazenda era enorme. Cercada de alpendres erguidos em granito, pé direito alto, muitas janelas e portas trabalhadas em madeira de lei.
Manoel Tropeiro nem percebeu em sua euforia que jamais tinha visto aquele lugar. Ele que era tão acostumado a andar por aquelas bandas. Aquele casarão tão suntuoso! Pensou apenas levemente que talvez não conhecesse tão bem a região como pensava. Vai ver os donos do lugar eram servidos por outro tropeiro, e afinal, não é bom para sua profissão fuçar onde outro colega trabalha.
Mas vez por outra, o Manoel se pegava matutando. Tinha a impressão de que as pessoas lhe ignoravam. Tudo bem! Ele era um estranho mesmo! Mas não era um comportamento típico das pessoas simples do sertão, divagava ele.
Também notou que as pessoas dançavam como se não tocassem no chão! Que coisa?! -  pensava ele. - deve ser efeito da bebida, devo ter passado da conta.
Lá pelas tantas entrou alguém zunindo a galope pelo pátio. Apeou do cavalo. Achegou-se ao dono da festa: um homem alto, branco, bigode bem acentuado, de cabelos lisos e curtos, meio agalegado, como se diz na região.
Houve uma certa agitação seguida de uma comoção geral. Falava-se aqui e ali. O noivo, que até então Manoel nem havia notado, pois estava distraído com a festança, entrou correndo e chorando para dentro do casarão. Seguiu-se um silêncio sepulcral e a ordem: a festa acabou! Não vai haver mais casamento!
Imediatamente toda a família se retirou. Fecharam-se as portas do casarão, e as pessoas atônitas e aos cochichos começaram a ir embora. Como num passe de mágica, já não havia ninguém, nem música, nem murmúrio algum. Apenas Manoel Tropeiro ainda aturdido e sua companheira estavam de pé abraçados.
A moça então sussurrou-lhe aos ouvidos: a noiva morreu! Foi encontrada enforcada debaixo de um pé de oiticica. Parece que um tropeiro errante mexeu com ela, e ela, desonrada se enforcou.
Aquilo soou como um tiro de bacamarte na cabeça do Manoel. Cabisbaixo, tomou sua amada pela mão, montou na sua mula com ela à garupa, e voltaram para seu acampamento.
Lá chegando, e ainda chocado e entristecido pela história que vivenciara, abraçou ternamente sua amada. Choraram juntos e se amaram loucamente entre juras de amor eterno, sussurrando um ao ouvido do outro: "minha bembena... minha bembena".
Cedo da manhã, ainda escuro, Manoel Tropeiro acordou sentindo um cheiro estranho, e como se algo lhe perfurasse as costelas. Estava abraçado a um esqueleto vestido com trapos de brocado e rendas.
Deu o grito de horror que foi ouvido ao longe pelos habitantes da região: Ai meu Deus! Santa Virgem Maria!

Levantou-se de um pulo só. Um dos braços da caveira voou longe. Montou a primeira mula que viu, e saiu em disparada no escuro da noite! Atrás dele, uma caveira estalando os ossos corria e gritava: "minha bembena... minha bembena. Não me deixe! Não me abandone! Voce prometeu me amar para sempre!"
Em sua corrida desenfreada, e perseguido pela caveira, Manoel Tropeiro passou pelo casarão onde estivera na festa. Só havia ruínas. Escombros de um passado distante.

Conta-se que até hoje, nas cercanias de Caicó e Timbaúba dos Batistas, em certas noites de maio pode se ver um homem à galope em uma mula, com um olhar feito louco. Parece que a mula nem toca o chão quando cavalga. 

E se a pessoa for corajosa mesmo e esperar um pouco mais vai ver uma caveira passando correndo, estalando todos os ossos e gritando: "minha bembena... minha bembena. Não me deixe! Não me abandone! Voce prometeu me amar para sempre!"
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domingo, 4 de abril de 2010

O oitizeiro assombrado

Era um desses dias de chuvarada no sertão, lá pras bandas de Caicó. Quando isso acontece é chuva mesmo: um toró!
Mas o dia prometia ser ensolarado... e desde a madrugada meu tio Pé-de-Graxa saíra para caçar preá com o seu tio conhecido por todos como Tio Bandeco. Eram eles e uma trinca de cachorros desses bons de mato, que não refugam diante dos perigos de uma caçada, e bons pra desentocar um tatu ou peba.
Nesse dia, porém, a trinca refugou... também pudera! Cachorro que se presa sabe das coisas... vê o que ninguém vê... pressente quando a coisa não é desse mundo. Meu Tio Pé-de-Graxa também tinha fama de ver o que ninguém vê.
Então, já de manhãzinha caiu aquele toró. Correram todos a se abrigar debaixo de um frondoso oitizeiro. Tio Bandeco entrou primeiro. Afoito, foi logo se encostar no tronco da árvore chamando o Pé-de-Graxa:
- Vem logo, sô... que cê faz aí na chuva que não entra logo?
- Nada tio - respondeu ele. - Num tô com vontade de entrar, a chuvinha inté que tá boa! - falou assim com um jeito meio desconfiado, o rosto pingando de suor apesar da chuvarada, e com os olhos meio esbugalhados.
Enquanto isso, a trinca de cachorros também não entrou debaixo do oitizeiro. Uns rosnavam, o outro latia...
Cês são uma cambada de besta - retrucou Tio Bandeco enquanto tirava do alforje um rolinho de fumo pra mascar..
- É... melhor ser besta mermo nessas hora - pensou alto Tio Pé-de-Graxa, enquanto a cachorrada ficava ainda mais agitada.
- Por que cê tá falando isso? - perguntou intrigado o Tio Bandeco. - Nada não. - respondeu Graxa.
E assim ficaram o tempão que durou aquela chuva: Graxa encismado pegando chuva; a cachorrada latindo e rosnando; e Tio Bandeco gozando da cara deles encostado no tronco do oitizeiro e meio dependurado com a mão agarrada a um galho.
Passada a chuva, Graxa todo ensopado chamou o Tio Bandeco: vamo que já dá pra seguir viage. - É... - disse o Tio Bandeco. - Eu todo sequinho e voce e essa cachorrada tudo encharcado. Que deu nôces?
Cê num viu não, tio? - falou o Graxa. - Viu o quê, Graxa?
Os cão latindo, sô... rosnando danado... - falou Graxa com um som gutural saindo quase forçado da garganta.
- Cê encostado naquele tronco tava se agarrando no punho da rede de um defunto, sô... um defunto feio, quase todo podre, e vc lá agarrado na rede e mascando fumo... cruz credo!
- Cê tá brincando, Graxa! - exclamou assustado o Tio Bandeco.
- E eu sô lá home de brincar com essas coisa do outro mundo, tio? - retrucou Graxa.
Mal Graxa acabou de falar o Tio Bandeco desatou numa carreira que levantou até pó do chão molhado...
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Entre escombros e malassombros de Moacir Santos é licenciado sob uma Licença Creative Commons Attribution-NonCommercial-NoDerivs.